Transformações recentes e desafios para a rede de proteção do SFN

Nos últimos anos, o Sistema Financeiro Nacional (SFN) passou por transformações em termos de inovações em modelos de negócio e em infraestruturas operacionais, as quais são mais visíveis por serem refletidas nos serviços prestados pelas instituições financeiras (IFs). Todavia, nos “bastidores” do SFN, outras mudanças relevantes ocorreram, aprimorando mecanismos voltados assegurar a sua solidez e resiliência. Trata-se das transformações no âmbito da rede de proteção do SFN[1].

A rede de proteção do SFN é constituída por mecanismos, procedimentos e entidades que contribuem para a preservação da estabilidade financeira. Além de delimitar um perímetro prudente para a tomada de risco por parte das IFs, essa rede reduz o risco de haver prejuízos a prestamistas, depositantes e contribuintes.[2]

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A rede de proteção financeira é composta por quatro principais frentes: (a) regulação prudencial; (b) mecanismos de assistência de liquidez; (c) programas de garantia de depósitos; e (d) regimes de resolução. Como tratado baixo, no período recente, houve avanços importantes em algumas dessas frentes capitaneados pelo Banco Central junto ao Conselho Monetário Nacional (CMN), mas restam alguns desafios.

Comparativamente às demais frentes, a regulação prudencial apresentou maior dinamicidade. Dada a profusão de aprimoramentos nessa frente, cumpre destacar dois deles e uma medida que se encontra em discussão.

O primeiro aprimoramento é a maior uniformidade na metodologia das normas prudenciais aplicáveis as instituições supervisionadas pelo BC[3], ainda que regidas pela proporcionalidade. Além de aperfeiçoar a identificação de riscos, reduzir a complexidade da supervisão e viabilizar comparações, essa convergência propicia a coordenação entre o BC e o CMN no exercício de suas competências. Isso facilita, por exemplo, a transição entre diferentes enquadramentos, como se deu há pouco com a reformulação dos critérios de classificação de conglomerados prudenciais tratada em artigo publicado no JOTA.

O segundo aprimoramento está relacionado à nova metodologia de apuração da parcela de ativos ponderados pelo risco relativa ao risco operacional (RWAOPAD) que passou a vigorar a partir desse ano. A emergência de fatores que incrementam a exposição das IFs a esse risco, como o uso intensivo de novas tecnologias, tem levado a revisões do framework internacional relativo a seu gerenciamento. As alterações no cálculo da parcela do RWAOPAD visam acompanhar essas revisões e robustecer os mecanismos voltados a lidar com esse risco[4].

Ainda, encontra-se em análise pelo BC a proposta de regulação solo basis, que estabelece requisitos para o tratamento de riscos individualizados no âmbito de conglomerados prudenciais. Conquanto a consolidação prudencial seja uma técnica relevante, ela pode favorecer a concentração de recursos e riscos em instituições do conglomerado, trazendo desafios para o gerenciamento de situações de estresse[5]. A regulação solo basis objetiva estabelecer requisitos individualizados para endereçar esses desafios e pode vir a ser introduzida em breve no arcabouço regulatório nacional.

Quanto à frente dos mecanismos de assistência de liquidez, desde o final da década de 1990, o BC havia descontinuado as suas linhas de assistência por meio de empréstimos em moeda nacional, passando a atuar predominantemente com operações de redesconto para atender a necessidades de liquidez de curtíssimo prazo de IFs[6]. Essa situação gerou a avaliação de que função de prestamista de última instância, típica dos bancos centrais, não estava sendo exercida pelo BC[7].

Para alterar esse cenário, em 2019, o BC anunciou requisitos essenciais para a implementação de linhas financeiras de liquidez (LFLs)[8]. Durante a Crise da Covid-19, foram estabelecidas duas linhas temporárias especiais de liquidez para endereçar desafios específicos[9]. As LFLs definitivas foram regulamentadas e passaram a funcionar gradualmente a partir de 2021.

O BC implementou duas LFLs definitivas: (a) a Linha de Liquidez Imediata, para facilitar a gestão de descasamentos de fluxos de caixa de curto prazo; e (b) a Linha de Liquidez a Termo, para atender descasamentos entre ativos e passivos em prazo mais longo. Ambas as LFLs são operacionalizadas por meio de empréstimos em moeda nacional garantidos por uma cesta de ativos, o que expande a possibilidade de acesso comparativamente às operações de redesconto.

Ao permitirem a afirmação dos poderes de prestamista de última instância do BC, as LFLs fortalecem a rede de proteção do SFN, disponibilizando uma via adicional para o aliviamento de restrições de liquidez. Como a autoridade monetária passou a se utilizar desse “velho-novo” mecanismo recentemente, resta acompanhar a sua efetividade e oportunidades de aprimoramento.

Em relação aos programas de garantia de depósito, no país, eles são operacionalizados pelo Fundo Garantidor de Créditos (FGC) e pelo Fundo Garantidor do Cooperativismo de Crédito (FGCoop). O valor de cobertura de créditos para cada depositante está limitado a R$ 250 mil por instituição e conglomerado financeiro. No caso do FGC, apenas o valor total de R$ 1 milhão é garantido para cada depositante no período de quatro anos consecutivos contra o conjunto de todas as instituições associadas ao fundo.

O FGC, em coordenação com o BC, tem sido um agente central na gestão de crises, como visto durante a crise financeira de 2008 e a crise da Covid-19, episódios em que os mecanismos do fundo foram expandidos para garantir a liquidez do SFN. Um dos mecanismos criados nesses episódios foi o Depósito a Prazo com Garantia Especial, voltado a auxiliar instituições financeiras de menor porte a se capitalizarem.

No âmbito internacional, os desdobramentos do estresse de março de 2023 ocorrido no sistema bancário dos Estados Unidos geraram discussões a respeito da reformulação dos programas de garantia de depósito, com propostas de até mesmo tornar o valor dessa garantia ilimitado[10].

No país, os valores garantidos pelos fundos receberam a sua última atualização há mais de uma década e, atualmente, tramita no Congresso Nacional o PL 4395/2024, propondo elevar o limite garantido pelo FGC para o valor de R$ 1 milhão. Efetiva necessidade, potenciais benefícios e custos são aspectos que devem ser levados em conta na análise dessa proposta, pois a sua aprovação pode reverberar sobre o custo incorrido pelas IFs para participarem do fundo.

Quanto à frente dos regimes de resolução, a legislação vigente prevê três deles: (a) intervenção; (b) Regime de Administração Especial Temporária; e (c) liquidação extrajudicial. Esses regimes foram instituídos na segunda metade do século passado e tiveram um papel central na reorganização do setor bancário na década de 1990.

Entretanto, dado que após a crise financeira de 2008 houve um movimento que conduziu a reformas relevantes nos regimes de resolução no âmbito internacional, sobretudo com base nas recomendações publicadas pelo Financial Stability Board[11], o Brasil tem sido objeto de críticas pelo fato de o arcabouço nacional não se adequar totalmente a referidas recomendações[12]. A convergência com os padrões internacionais depende de modificações legislativas e o PLP 281/2019, que tramita no Congresso Nacional, tem esse objetivo.

Enquanto os legisladores analisam esse projeto, na esfera regulatória, o BC efetuou aprimoramentos recentes em relação ao Plano de Recuperação e de Saída Organizada[13] de IFs enquadradas no segmento prudencial S1[14], introduzindo novos conceitos e detalhando procedimentos. Esse documento auxilia a autoridade de resolução na condução eficiente dos regimes de resolução e as modificações em seu escopo vão nesse sentido.

Enfim, as transformações recentes na rede de proteção SFN trouxeram aprimoramentos relevantes para os mecanismos que colaboram para preservação da estabilidade financeira. Contudo, a dinamicidade do SFN, o surgimento de novos riscos e a convergência do arcabouço nacional às melhores práticas são fatores que exigem atenção para assegurar que cada uma das frentes dessa rede esteja pronta para enfrentar os desafios aos quais estão expostas.

Afinal, as inovações nos modelos de negócios no SFN serão utilizadas na medida em que oferecem segurança aos usuários e as transformações em seus “bastidores” contribuem para essa finalidade.


[1] Para fins de restrição analítica, o artigo tem como objeto as modificações regulatórias que afetam as IFs diretamente. Menções às instituições de pagamento e a infraestruturas do mercado financeiro serão feitas apenas na medida em que houver necessidade. No entanto, reconhece-se que, com base em uma perspectiva ampliada, o conceito de “rede de proteção” poderia ser estendido, ainda que parcialmente, a essas outras entidades.

[2] KANE, Edward J. Designing Financial Safety Nets to Fit Country Circumstances. Policy Research Working Paper No 2453. Washington, D.C.: World Bank, 2000, p. 3.

[3] BRASIL. Banco Central do Brasil. Voto BCB nº 201/2022. Brasília, 16 nov. 2022, itens 6 a 8.

[4] BRASIL. Banco Central do Brasil. Voto BCB nº 175/2023. Brasília, 28 nov. 2023, itens 2 a 4.

[5] Para uma análise dos desafios identificados, vide BRASIL. Banco Central do Brasil. Análise de impacto regulatório – Requerimentos individuais (solo basis) para conglomerados prudenciais. Brasília, mar. 2023.

[6] BRASIL. Banco Central do Brasil. Voto BCB nº 140/2019. Brasília, 10 jul. 2019, itens 3 e 4.

[7] INTERNATIONAL MONETARY FUND (IMF). Brazil – Financial Sector Assessment Program. Technical Note on Bank Resolution, Financial Sector Safety Nets, Crisis Prevention and Management. IMF Country Reports No. 18/341. Washington, D.C.: International Monetary Fund, jul. 2018, p. 25.

[8] Vide BRASIL. Banco Central do Brasil. Voto BCB nº 140/2019. Brasília, 10 jul. 2019.

[9] Um resumo do uso das linhas temporárias especiais de liquidez pode ser visto em BRASIL. Banco Central do Brasil. Linha Temporária Especial de Liquidez é liquidada. Notícias. Brasília, 22 dez. 2022. Disponível em: <https://www.bcb.gov.br/detalhenoticia/649/noticia>. Acesso em: 18 fev. 2025.

[10] Para um bom sumário dessas discussões, vide HÜPKES, Eva. Redefining the Financial Safety Net: Tackling New Challenges and Shaping the Future of Deposit Insurance. Keynote Speech at IADI Europe Regional Committee and European Forum of Deposit Insurers Joint Workshop. Berlim, 04 set. 2023. Disponível em: <https://www.iadi.org/2023/04/redefining-the-financial-safety-net-tackling-new-challenges-and-shaping-the-future-of-deposit-insurance-on-4-september-2023/>. Acesso em: 18 fev. 2025.

[11] Vide FINANCIAL STABILITY BOARD (FSB). Key Attributes of Effective Resolution Regimes for Financial Institutions. Basel, out. 2011. A versão atualizada das recomendações pode ser encontrada em: FINANCIAL STABILITY BOARD (FSB). Key Attributes of Effective Resolution Regimes for Financial Institutions – Revised Version. Basel, abr. 2024.

[12] INTERNATIONAL MONETARY FUND (IMF). Brazil – Financial Sector Assessment Program. Technical Note on Bank Resolution, Financial Sector Safety Nets, Crisis Prevention and Management. IMF Country Reports No. 18/341. Washington, D.C.: International Monetary Fund, jul. 2018, p. 34.

[13] O Plano de Recuperação e de Saída Organizada é um dos documentos previstos nas recomendações do Financial Stability Board a respeito dos mecanismos de resolução, listando as estratégias de recuperação e resolução das IFs. Vide FINANCIAL STABILITY BOARD (FSB). Key Attributes of Effective Resolution Regimes for Financial Institutions – Revised Version. Basel, abr. 2024, p. 17-19.

[14] Além das IFs enquadradas no segmento prudencial S1, com base em determinação prévia do BCB, devem elaborar o PRSO outras IFs e instituições de pagamento que desempenham funções críticas. Vide Resolução CMN nº 5.187/2024, artigo 3º, e Resolução BCB nº 440/2024, artigo 2º.

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