TCU mantém entendimento sobre inexequibilidade de preços

No dia 5 de fevereiro de 2025, o plenário do Tribunal de Contas da União (TCU) esteve perto de rever entendimento da corte a respeito da inexequibilidade de preços em licitações[1].

Editada em 2010, e consolidando posição prevalente na jurisprudência do TCU, a súmula 262 do órgão dispõe que: “O critério definido no art. 48, inciso II, § 1º, alíneas ‘a’ e ‘b’, da Lei 8.666/1993 conduz a uma presunção relativa de inexequibilidade de preços, devendo a Administração dar à licitante a oportunidade de demonstrar a exequibilidade da sua proposta” (grifo nosso).

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O dispositivo referido, revogado pela Lei 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos – NLLC), previa:

Art. 48.  Serão desclassificadas: […]

II – propostas com valor global superior ao limite estabelecido ou com preços manifestamente inexequíveis, assim considerados aqueles que não venham a ter demonstrada sua viabilidade através de documentação que comprove que os custos dos insumos são coerentes com os de mercado e que os coeficientes de produtividade são compatíveis com a execução do objeto do contrato, condições estas necessariamente especificadas no ato convocatório da licitação. […]

  • 1º Para os efeitos do disposto no inciso II deste artigo consideram-se manifestamente inexequíveis, no caso de licitações de menor preço para obras e serviços de engenharia, as propostas cujos valores sejam inferiores a 70% (setenta por cento) do menor dos seguintes valores:
  1. a) média aritmética dos valores das propostas superiores a 50% (cinquenta por cento) do valor orçado pela administração, ou
  2. b) valor orçado pela administração.

Em uma votação com divergência, o tema voltou à pauta do TCU em razão da diferença redacional constante na NLLC, cujo § 4º de seu art. 59 prevê:

Art. 59. Serão desclassificadas as propostas que:[…]

III – apresentarem preços inexequíveis ou permanecerem acima do orçamento estimado para a contratação;

IV – não tiverem sua exequibilidade demonstrada, quando exigido pela Administração; […]

  • 2º A Administração poderá realizar diligências para aferir a exequibilidade das propostas ou exigir dos licitantes que ela seja demonstrada, conforme disposto no inciso IV do caputdeste artigo.
  • 4º No caso de obras e serviços de engenharia, serão consideradas inexequíveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% (setenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração.

O voto apresentado pelo relator, ministro Jhonatan de Jesus, se limitou, no que concerne ao dispositivo destacado, a expor que, no Acórdão 465/2024-TCU-Plenário, o TCU havia decidido ser relativa a inexequibilidade referida no § 4º do art. 59 da NLLC, estendendo ao atual regramento licitatório o teor da súmula 262 – e, por esse motivo, no processo em pauta, seria adequada a manutenção desse posicionamento.

O ministro Antônio Anastasia, divergindo do relator quanto ao ponto, prolatou voto revisor, aduzindo que, na hipótese do § 4º, não se aplica o § 2º, pois “a inexequibilidade neste caso é uma presunção absoluta, motivo pelo qual não há que se falar em necessidade de realização da diligência prevista no §2º. Ainda de acordo com o ministro, o § 4º estabelece “a exceção de que, no caso específico de obras e serviços de engenharia, serão considerados inexequíveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% do valor orçado pela Administração”, e, nesse sentido, “admitir a tese da presunção relativa é tornar letra morta a regra do §4º que deixaria de ter qualquer utilidade, porquanto seria possível à Administração Pública contratar por qualquer preço, desde que entenda exequível”.

O ministro Benjamin Zymler, em oposição ao entendimento de Anastasia, defendeu a tese da presunção relativa de inexequibilidade, em vista dos melhores resultados que tende a trazer nas contratações públicas. A comunicação do ministro Jorge Oliveira, que presidia a sessão, foi no mesmo sentido, in verbis:

Como a Administração não conhece, de antemão, a estrutura detalhada de custos das empresas, e nem poderia saber aprioristicamente todas as razões que levam um proponente a apresentar valores reduzidos, é perfeitamente possível que uma licitante, por meio de argumentos razoáveis, justifique o preço oferecido. Foi esse o argumento central que pautou a jurisprudência deste Tribunal sob a égide da Lei 8.666/1993, cristalizada na Súmula nº 262, que, a meu ver, merece nossa deferência mesmo diante da nova redação constante na Lei nº 14.133/2021.

A decisão do plenário do TCU foi por acompanhar o relator, concluindo pela incidência do conteúdo da súmula 262 no contexto da NLLC. Há uma racionalidade compreensível por trás da decisão, que parece adequada e suscita algumas reflexões.

Em primeiro lugar, a inexequibilidade é uma questão de fato: o que torna uma proposta inexequível é seu preço ser inferior ao custo de cumprimento.[2] Não parece correto presumir, sem possibilidade de prova em contrário, que um percentual do valor orçado pelo Poder Público seja uma evidência cabal da inexequibilidade de uma proposta.

Além disso, a Administração não tem capacidade de saber, de antemão, os eventuais motivos que podem levar uma empresa a ofertar um preço inferior a 75% do valor estimado. Seja por conta de inovação em processos de trabalho, seja em razão de questões relativas ao custo de estocagem, seja por qualquer motivo não mapeado.

É bastante possível que a proposta da empresa seja exequível, mesmo com valores inferiores à presunção legal. Para que o Poder Público possa averiguar tal possibilidade com mais clareza, diligenciar ao licitante previamente parece o melhor caminho.

Ademais, a prática mostra que, não raras vezes, empresas participantes de certames públicos de fato demonstram a viabilidade de seus preços (inferiores a 75% do orçamento estimado pela Administração) e executam contratos subsequentes com sucesso. Há, inclusive, jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça nesse sentido.[3]

Vale ainda dizer que a doutrina compreende como relativa à presunção constante no § 4º do art. 59 da Lei 14.133/2021, a exemplo de Marçal Justen Filho, para quem “não é cabível admitir a tese de que seriam desclassificadas, de modo inevitável, as propostas de valor inferior a 75% do valor orçado. Essa orientação, que configuraria uma presunção absoluta de inexequibilidade, equivaleria à reintrodução no sistema jurídico brasileiro da licitação por preço-base”.[4]

Também é válido pontuar que a posição vencedora no TCU, ao considerar que o § 4º do art. 59 da NLLC contém uma presunção relativa, não necessariamente torna “letra morta” o conteúdo do dispositivo. Pode-se considerar que, ao estabelecer um “corte” específico que sugere a inexequibilidade (valores inferiores a 75% do orçamento estimado) quando se trata de obras e serviços de engenharia, o legislador obrigou a Administração a exigir prova em contrário nesses casos, normalmente via diligência.

Para o restante dos bens e serviços, na ausência de critério objetivo, poderia o agente de contratação entender que uma proposta com valor, digamos, de 70% do orçamento estimado não exige esclarecimentos adicionais, pois na experiência da Administração, para aquele objeto, essa diferença é aceitável.

Por fim, para além do fato de a racionalidade adotada pelo TCU na decisão ser compreensível, o caso chama atenção a uma possível tendência. A de, mesmo diante de uma nova lei de contratações, os intérpretes darem ao texto legal vigente interpretações semelhantes às que eram empregadas na leitura da revogada lei 8.666, ainda que haja diferenças redacionais entre as duas normas. Será interessante acompanhar se isso também acontecerá.


[1] Referimo-nos à discussão que deu origem ao Acórdão 214/2015-TCU-Plenário.

[2] NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação pública e contrato administrativo. 7. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2024, p. 797-798.

[3]  “[…] 2. A licitação visa a selecionar a proposta mais vantajosa à Administração Pública, de maneira que a inexequibilidade prevista no mencionado art. 48 da Lei de Licitações e Contratos Administrativos não pode ser avaliada de forma absoluta e rígida. Ao contrário, deve ser examinada em cada caso, averiguando-se se a proposta apresentada, embora enquadrada em alguma das hipóteses de inexequibilidade, pode ser, concretamente, executada pelo proponente. Destarte, a presunção de inexequibilidade deve ser considerada relativa, podendo ser afastada, por meio da demonstração, pelo licitante que apresenta a proposta, de que esta é de valor reduzido, mas exequível.

  1. Nesse contexto, a proposta inferior a 70% do valor orçado pela Administração Pública (art. 48, § 1º, b, da Lei 8.666/93) pode ser considerada exequível, se houver comprovação de que o proponente pode realizar o objeto da licitação. […]
  2. Na hipótese dos autos, conforme se pode constatar na r. sentença e no v. acórdão recorrido, houve demonstração por parte da empresa classificada em primeiro lugar (LEÃO & LEÃO LTDA) e por parte do MUNICÍPIO DE RIBEIRÃO PRETO de que a proposta apresentada por aquela era viável e exequível, embora em valor inferior ao orçado pela Administração. Conforme informações apresentadas pelo ora recorrido, a vencedora do certame ‘demonstrou que seu preço não é deficitário (o preço ofertado cobre o seu custo), tendo inclusive comprovado uma margem de lucratividade’. Além disso, a empresa vencedora vem prestando devidamente o serviço contratado, o que demonstra a viabilidade da proposta por ela apresentada durante o procedimento licitatório. […]
  3. O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do RMS 11.044/RJ, de relatoria do Ministro Humberto Gomes de Barros (1ª Turma, DJ de 4.6.2001), consagrou entendimento no sentido de que, ‘se a licitante vitoriosa cumpriu integralmente o contrato objeto de licitação, afasta-se logicamente a imputação de que sua proposta era inexequível’.
  4. Recurso especial desprovido.” (REsp 965.839/SP, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, Julgado em 15/12/2009, DJe 2/2/2010).

[4] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratações administrativas. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 778.

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