A consulta pública do Cade em mercados digitais

Como diretores da Associação Brasileira de Liberdade Econômica (ABLE), recentemente participamos da Consulta Pública (Edital 03/02/25) promovida pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que solicitou contribuições acerca de aspectos concorrenciais dos ecossistemas digitais relacionados aos sistemas operacionais iOS e Android.

A ABLE, comprometida com a promoção de um ambiente regulatório aprimorado e a defesa das liberdades econômicas, busca contribuir para o debate sobre as falhas de governo e de mercado nos ecossistemas digitais e seus impactos na concorrência e inovação. Destacamos a importância de analisar como as restrições impostas por esses ecossistemas podem influenciar a livre concorrência e como intervenções regulatórias podem tanto corrigir distorções quanto, em certos casos, agravá-las.

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Neste artigo trazemos um resumo das ideias apresentadas à Consulta Pública em tela, oferecendo uma análise crítica sobre os desafios concorrenciais nos ecossistemas digitais de dispositivos móveis.

Serão examinadas as interações entre as práticas de mercado das plataformas dominantes e as políticas regulatórias, buscando identificar caminhos que promovam um ambiente mais competitivo e inovador no setor digital brasileiro. Dentre as contribuições iniciais que fizemos pela ABLE, destacamos os pontos abaixo.

Premissas da regulação

Visando subsidiar o Cade na formulação de políticas que promovam um equilíbrio entre regulação e liberdade econômica, a ABLE entende que a ordem econômica é baseada na livre iniciativa e a regra é a não intervenção, devendo ela ser justificada pelo regulador.

Nessa esteira, essa entidade tem o entendimento de que se aplicam ao Cade os dispositivos sobre a Lei de Liberdade Econômica e da Lei das Agências Reguladoras (LAR), especialmente a exigência de Análise de Impacto Regulatório (AIR), além dos dispositivos da LINDB. E todo debate deve ser feito com base em evidências, inclusive de pesquisas comportamentais e neurocientíficas, as quais ainda não foram feitas pelo regulador.

Assim, toda intervenção deve ainda ser antecipada por uma justificativa que identifique falhas de mercado e atenta às falhas de governo.

Alegadas falhas de mercado nos ecossistemas digitais

A concorrência em mercados digitais e a necessidade de uma abordagem dinâmica

A análise concorrencial tradicional baseia-se principalmente em participação de mercado e políticas de precificação para determinar o poder de mercado de uma empresa. No entanto, para alguns autores, essas métricas podem não capturar adequadamente a dinâmica dos mercados digitais, onde a competição ocorre não apenas dentro do mercado, mas também pelo mercado, por meio da inovação e da disrupção tecnológica.

Conforme aponta Coyle, por exemplo, o crescimento das plataformas digitais estaria fundamentado em inovações que atraem novos usuários e tornam os produtos ou serviços mais valiosos à medida que sua base de consumidores cresce. Assim, nessa perspectiva, o Cade deve considerar incentivos para inovação, barreiras à entrada e a capacidade das plataformas de manterem sua posição dominante ao longo do tempo, em vez de focar exclusivamente em práticas tarifárias ou na estrutura do mercado em determinado momento.

Os efeitos de rede e as barreiras à entrada em plataformas digitais

Os mercados digitais são amplamente impulsionados por efeitos de rede, ou seja, quanto mais usuários aderem a uma plataforma, maior é o valor percebido do serviço, tanto para consumidores quanto para fornecedores. Esse fenômeno pode criar vantagens competitivas significativas para plataformas estabelecidas e, ao mesmo tempo, tornar potencialmente mais difícil a entrada de novos concorrentes.

No caso de sistemas operacionais móveis, alega-se que a Apple e o Google utilizariam efeitos de rede e estratégias de lock-in para manter usuários e desenvolvedores dentro de seus ecossistemas, limitando a interoperabilidade com serviços de terceiros.

Uma possível resposta regulatória, adotada pela União Europeia por meio do Digital Markets Act (DMA), foi a exigência de padrões abertos e maior interoperabilidade para que consumidores tenham mais opções e possam transitar entre plataformas com menor custo. Todavia, não foi essa a solução adotada nos EUA.

O Cade deve considerar essas questões ao avaliar práticas potencialmente anticoncorrenciais em mercados onde os efeitos de rede desempenham um papel central na estruturação do setor. Mas deve fazê-lo considerando a legislação de países mais inovadores e não a Europa, que tem sido incapaz de promover inovação e vem sofrendo com excesso de regulação.

O desafio da definição de mercado em plataformas digitais

A delimitação de mercado relevante é um dos pilares da análise concorrencial, mas sua aplicação a plataformas digitais é desafiadora, dado que essas empresas frequentemente operam em múltiplos segmentos interconectados.

No caso da disputa judicial entre a Epic Games e a Apple, nos Estados Unidos, ficou evidente como diferentes interpretações sobre a definição de mercado podem influenciar a análise concorrencial. Enquanto a Apple argumentava que concorria com diversos ecossistemas tecnológicos, a Epic Games sustentava que a App Store constituía um mercado próprio devido à sua política de controle sobre pagamentos e distribuição de aplicativos.

Embora o Cade possa eventualmente avaliar premissas mais flexíveis para definição de mercado relevante, analisando a interdependência entre serviços e como as plataformas utilizam sua posição dominante para potencialmente expandir sua influência em mercados adjacentes, deve fazê-lo considerando os potenciais efeitos e prejuízos ao processo de inovação a partir de evidências, estando atento ao distanciamento do excesso regulatório da Europa frente aos países mais inovadores como EUA e China.

Expansão de plataformas para mercados conectados e o impacto concorrencial

Alega-se que as grandes plataformas não se limitam a consolidar seu domínio em um único mercado, mas frequentemente utilizariam sua base de usuários e seus recursos para expandir sua atuação em setores adjacentes. Isso alegadamente poderia ocorrer tanto por meio de fusão e aquisição, quanto por integração vertical. Essas estratégias poderiam, alegadamente, criar barreiras indiretas à entrada de novos concorrentes, pois dificultariam a competição em mercados interligados.

Em nosso entendimento, se for o caso de trabalhar com direito comparado, também aqui o Cade deveria adotar uma abordagem próxima à legislação dos EUA, embora possa eventualmente analisar o impacto dessas movimentações, levando em conta não apenas o mercado diretamente afetado pela aquisição, mas também os setores interconectados. Novamente, fundamental trabalhar com base em evidências científicas, ponderar efeitos e mensurar impactos.

Assimetria de informação e falta de transparência

Alega-se que as plataformas digitais operam sob um modelo de fortes externalidades de rede, no qual o valor de um serviço aumenta conforme mais usuários aderem à plataforma. O que é até trivial do ponto de vista de Análise Econômica do Direito. Esse fenômeno pode criar vantagens competitivas significativas para players estabelecidos e, ao mesmo tempo, torna potencialmente difícil a entrada de novos concorrentes.

Também aqui acreditamos ser fundamental trabalhar com evidências científicas, pesquisas empíricas e ter em mente a legislação de países mais inovadores, se for o caso de trabalhar com direito comparado.

Fusões estratégicas e ‘killer acquisitions’

Alega-se muitas vezes em papers acadêmicos que nos ecossistemas digitais, as plataformas detêm informações estratégicas que não seriam acessíveis a concorrentes ou consumidores. Essa assimetria criaria um ambiente onde as grandes empresas podem manipular ranqueamentos, preços e recomendações, favorecendo seus próprios produtos e limitando a exposição de concorrentes menores.

A decisão da Comissão Europeia contra o Google, que impôs uma multa de € 2,42 bilhões pelo favorecimento de seus próprios serviços de comparação de preços, ilustra como a falta de transparência nos algoritmos distorce a concorrência.

Novamente aqui acreditamos que o exemplo europeu não seja positivo. Há déficit de inovação na Europa, parecendo-nos mais que europeus têm se aproximado à visão do antitruste como política pública. A bem da verdade, europeus têm usado a regulação para defesa comercial em outras frentes, como sabemos da experiência do agronegócio.

O Cade deveria considerar a legislação norte-americana e sua jurisprudência, ainda que possa considerar mecanismos que exijam maior transparência sobre os critérios de ranqueamento e as regras de recomendação, para garantir que consumidores e concorrentes tenham condições equitativas de competir no mercado. Novamente, sempre embasado em evidências científicas, inclusive comportamentais.

Considerações finais sobre alegadas falhas de mercado

Argumenta-se muitas vezes – especialmente em papers desprovidos de dados – que as grandes plataformas não apenas consolidam seu poder por meio de efeitos de rede, mas também através de fusões e aquisições de startups inovadoras antes que possam se tornar concorrentes reais.

O caso mais emblemático desse fenômeno costuma ser apontado pela aquisição do Instagram e do WhatsApp pelo Facebook, que supostamente eliminou potenciais competidores antes que tivessem a chance de crescer de forma independente.

No entanto, faltam evidências empíricas para tal alegação e intervenções no mercado devem ser precedidas de cuidada análise de impacto regulatório ou da intervenção promovida pela autoridade concorrencial, sendo a experiência americana a mais desejável para o Brasil. Talvez o Cade pudesse estar olhando para as medidas do Banco Central no mercado de arranjo de pagamentos, onde a atuação do governo parece excessiva e criando potenciais barreiras à inovação.

Falhas de governo nos mercados digitais

Regulação excessiva e seus impactos na concorrência

A regulação de mercados digitais é um tema complexo, pois envolve a necessidade de equilibrar intervenção estatal (que é a exceção e precisa ser justificada, como já dito) e a inovação privada. Quando normas são impostas sem uma análise criteriosa de seus impactos, há o risco de se estabelecer barreiras artificiais que prejudicam a concorrência e a inovação.

Um exemplo ocorreu no Reino Unido, onde a tentativa de regulamentar o Uber impondo exigências equivalentes às dos táxis tradicionais resultou na redução da competitividade da empresa sem criar alternativas viáveis de concorrência no setor de transporte urbano.

De forma semelhante, a Austrália enfrentou desafios ao tentar impor regras rígidas sobre plataformas digitais de publicidade e notícias, gerando efeitos colaterais que prejudicaram a transparência e dificultaram a adaptação das empresas menores às novas exigências.

Portanto, embora a regulação possa ser desejável para corrigir distorções concorrenciais, é fundamental que sua implementação seja cuidadosamente calibrada para evitar efeitos adversos que possam, inadvertidamente, beneficiar os próprios incumbentes. Novamente, o roteiro é dado pela LLE, LAR e LINDB.

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