PLP 108: o derradeiro ato contra os tribunais administrativos tributários

A trajetória do processo administrativo fiscal no Brasil está intrinsecamente ligada aos quase centenários Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e Tribunal de Impostos e Taxas (TIT), órgãos de julgamento ligados à União e ao Estado de São Paulo, respectivamente. Esses tribunais administrativos simbolizam uma tradição que os posicionou como protagonistas das oscilações históricas dessa espécie de processo.

Desde 2009, as leis que os regem vedam expressamente que seus colegiados afastem ou deixem de observar normas sob alegação de inconstitucionalidade[1].

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O conteúdo dessas leis se disseminou pelo país de tal forma que, na grande maioria (senão todos) dos tribunais administrativos brasileiros há vedação similar. Tornou-se comum a ideia de que não é possível o controle difuso de constitucionalidade no processo administrativo fiscal, como se maiores polêmicas não houvesse relativamente a esse tema.

O PLP 108, de 2024, proposto pelo governo para regulamentar o processo administrativo tributário relativo ao vindouro Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), reproduz a mesma vedação. Ocorre que o projeto, não satisfeito em vedar o controle de constitucionalidade, vai além e proíbe o simples controle incidental de legalidade das normas (art. 92, §3º).

Parte da comunidade jurídica protestou contra a tentativa de avanço sobre o controle de legalidade. Para melhor compreender a questão, contudo, é preciso que resgatemos o histórico que há por detrás da vitória da fazenda pública nas décadas passadas em proibir, sem maiores reações, o controle de constitucionalidade.

Nos anos de 1994 e 1995, muito antes de qualquer regulamentação legal sobre o tema, o Carf[2] e o TIT[3] expressamente reclamaram para si esse poder, e o fizeram por acórdãos que afirmaram inequivocamente a natureza jurisdicional de suas atividades, bem como a impossibilidade de dela se subtrair a resolução de antinomias entre a norma constitucional e as demais normas.

Na mesma década de 1990, o professor Ives Gandra Martins organizou livro[4] no qual nada menos que 33 notáveis estudiosos do direito, particularmente o tributário[5], responderam à seguinte questão: A autoridade administrativa como julgadora no processo administrativo fiscal pode deixar de aplicar a lei por considerá-la inconstitucional?

Ao fim, uma expressiva maioria de 25 autores respondeu afirmativamente, pelos mais variados motivos, incluindo (i) a necessidade de se respeitar o devido processo legal e a ampla defesa, (ii) a compreensão de que o processo administrativo fiscal tem natureza jurisdicional, bem como (iii) o entendimento de que a força normativa da Constituição impossibilita que da função judicante seja subtraída a prerrogativa de resolver antinomias tendo-a como parâmetro.

Dentre os autores que opinaram pela possibilidade do controle de constitucionalidade no processo administrativo está Ricardo Lobo Torres, para quem a semelhança entre o processo administrativo fiscal e o judicial elimina o risco que a informalidade poderia causar nessa hipótese.

Percebe-se que a discussão sempre correlacionou pragmaticamente a qualidade do rito com a possibilidade de se lhe outorgar poder tão intenso.

O raciocínio, simples e que remonta ao celebrado voto do Justice Marshall no caso Marbury v. Madison, pode ser assim sintetizado: o controle difuso de constitucionalidade é uma derivação lógica do – e intrínseca ao – poder de interpretar a lei na função judicante, isto é, o referido controle é uma mera decorrência do fato de que a resolução de antinomias normativas é da essência da interpretação exercida por quem julga, e que, por outro lado, a Constituição é norma.

Alberto Xavier, privilegiado pela sua qualidade de jurista binacional de habilidades reconhecidas tanto em Portugal como no Brasil, analisou a questão e produziu artigo no qual concluiu pela possibilidade do controle difuso de constitucionalidade no processo administrativo[6].

Em seu texto, valeu-se da arguta observação de direito comparado que distingue os ordenamentos de inspiração francesa e norte-americana, e observou que as tradições europeias “tendem, na prática, a proteger a força da lei do poder crítico de seus órgãos de aplicação, em especial os tribunais, contra cujo poder se ergueram as construções constitucionalistas de inspiração francesa. Todavia, em experiências constitucionais mais afastadas desse modelo e mais próximas do pensamento norte-americano, como a brasileira, é inegável a eficácia direta da Constituição(…)”.

Interessante notar que o estudo de Alberto Xavier supratranscrito foi expressamente citado e acompanhado nas suas conclusões por Melina Rocha Lukic[7], uma das juristas que lideraram a aprovação da reforma tributária cuja regulamentação o PLP 108 pretende.

Ocorre que as administrações tributárias, limitadas pelo míope desejo de aumentar a arrecadação, sempre se opuseram a esse entendimento por desejarem subtrair do contribuinte parcela significativa de sua defesa.

Não por outro motivo, após o Carf e o TIT reclamarem para si essa prerrogativa e receberem tamanho apoio da doutrina especializada, houve reação legislativa que culminou na publicação, no ano de 2009, das já mencionadas leis que proibiram essa prática no TIT e no Carf.

Surpreendentemente, tudo indica que não houve, à época, reações significativas da comunidade jurídica, pois não há notícias de impugnações abstratas da norma, tampouco que o judiciário tenha sido chamado a avaliar sua constitucionalidade incidentalmente.

A questão, contudo, não é completamente inédita no Supremo Tribunal Federal, que se manifestou timidamente sobre o tema em algumas oportunidades, nas quais examinou outros processos administrativos (cujas características não são, anote-se, tão robustas e jurisdicionais como o processo administrativo fiscal).

No âmbito da Petição 4.656, o ministro Gilmar Mendes – ao acompanhar voto que chancelou o controle difuso realizado pelo Conselho Nacional de Justiça –, ressalvou expressamente que o julgado não estaria pacificando a questão, que deveria ser posteriormente retomada, pois naquele caso específico o órgão administrativo (CNJ) apenas aplicou entendimento reiterado do STF.

O ministro Luís Roberto Barroso, ao seu turno, sustentou a ampla legitimação dos órgãos administrativos de julgamento para realizar o controle difuso de constitucionalidade, o que faz tanto na condição de doutrinador como na condição de ministro[8]. Não deixou de se preocupar, contudo, com a questão pragmática do quão preparados estão os órgãos administrativos para exercer esse poder.

A ministra Cármen Lúcia proferiu o mais moderno e interessante voto a respeito do tema, muitíssimo similar, inclusive, ao entendimento atual da suprema corte norte-americana sobre o assunto. Para a ministra, o poder de realizar o controle difuso pressupõe elevado grau de autonomia dos órgãos incumbidos da missão de controlar a validade dos atos administrativos, e é implícito a essa missão.

Nesse ponto, foi expressamente apoiada pelo ministro Barroso, cujo entendimento foi no sentido de que “quem quer que tenha que aplicar lei, sem ser um órgão subalterno, deve interpretar a Constituição e, se entender que a lei é incompatível com a Constituição, tem que ter o poder de não a aplicar, sob pena de estar violando a Constituição”.

Por fim, merece destaque a posição veemente do ministro Luiz Fux em defesa do referido controle. Na ocasião, inclusive, o ministro afastou a solução intermediária que havia sido ventilada na discussão no sentido de que os órgãos administrativos apenas pudessem realizá-lo se, anteriormente, já houvesse manifestação do judiciário pela inconstitucionalidade. Para o ministro, essa exigência “infantiliza os demais atores constitucionais” e se opõe “à tão propagada ideia de sociedade aberta de intérpretes da Constituição”.

Na perspectiva do direito comparado, verifica-se que o debate sobre essa questão é surpreendentemente similar nos Estados Unidos.

A Suprema Corte dos Estados Unidos, ao julgar em 1968 o caso Oestereich v. Selective Svc. Bd, manifestou-se de forma contrária à possibilidade de que os órgãos administrativos de julgamento resolvessem questões constitucionais, sob o fundamento de que tais órgãos seriam inaptos ao exercício desse poder, pois os julgadores administrativos daquela época exerciam suas funções sem dedicação exclusiva, por meio-período, e frequentemente sem remuneração.

Na decisão acima, a Suprema Corte Americana faz referência ao caso julgado pela Corte de Apelação do Distrito de Colúmbia, da década de 1940, cujo caso concreto também refletia um procedimento frágil, no qual o julgador administrativo não apenas julgava, mas também executava as leis, o que demonstra o estágio primitivo do sistema naquele período.

Após as muitas evoluções da justiça administrativa americana ocorridas nas décadas que se sucederam (especialmente em termos de autonomia, especialização técnica, contraditório e devido processo legal), e de ferrenhas críticas da doutrina[9], a Suprema Corte revisitou a matéria em 1994 ao julgar o caso Thunder Basin Coal Co. v. Reich (oriundo da Corte de Apelação do 10º Circuito Federal cuja jurisprudência é reiterada nesse sentido[10]), e concluiu que seu entendimento anterior não era absoluto ou mesmo de observância obrigatória, e que afastá-lo é mais admissível quando se trata de órgão administrativo de julgamento especializado, que goza de relativa independência.

Apesar de toda a riqueza da discussão, o problema no contexto do processo administrativo fiscal brasileiro foi reduzido a uma questão arrecadatória pelo fisco.

No passado recente, as autoridades fiscais obtiveram sucesso em diminuir a estatura dos tribunais administrativos, proibindo-lhes de controlar a validade das normas tendo a Constituição como parâmetro. Seu apetite contra esses órgãos, contudo, permanece vivo.

Agora, pretendem lhes retirar a própria qualidade de tribunais, infantilizando-os – nas palavras do ministro Fux – ao ponto de impedir o singelo controle de legalidade, jamais sequer contestado na doutrina.

Se aprovado em seus atuais termos, o PLP 108 criará órgãos absolutamente subalternos às administrações tributárias, restritos à avaliação dos fatos, nos quais reinará não mais apenas a supremacia da lei sobre a Constituição – como infelizmente ocorre hoje –, mas também a supremacia das normas infralegais sobre as próprias leis, numa total inversão de valores.

Some-se isso ao fato de que o PLP impõe aos “julgadores” a observância dos “atos administrativos vinculantes” que venham a ser proferidos pelo “Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias” (art. 92, §1º) (que é composto exclusivamente pelas procuradorias), e a subserviência dos órgãos de “julgamento” se torna absoluta.

Todo o “processo” se tornará mero teatro, inútil, tal como ocorre hoje nos estados da federação que ainda se valem da primitiva figura do recurso hierárquico, através do qual frequentemente ocorre a reversão do que restou decidido por colegiados técnicos, após a ampla defesa e o contraditório, mediante decisão do político titular da pasta fazendária sem a mínima fundamentação.

O Comitê de Harmonização, espécie de supersecretário de Fazenda, representará a vitória do retrocesso que há nesses modelos estaduais sobre a vanguarda do processo administrativo fiscal moderno que se observa no âmbito do Carf, que há muito descontinuou o recurso hierárquico e atua com grande independência técnica.

Ainda há tempo para que o Congresso Nacional corrija esse equívoco, resista às pressões do fisco, e escute com mais atenção a doutrina especializada e o direito comparado, em especial as grandes contribuições de James Marins sobre o tema[11].


[1] Art. 26-A do Decreto 70.235, de 6 de março de 1972 (com redação dada pela Lei nº 11.941/2009), e art. 28 da Lei Estadual nº 13.457, de 18 de março de 2009.

[2] BRASIL. Primeiro Conselho de Contribuintes. Oitava Câmara. Recurso nº 105.554. Acórdão nº 108-01.182. Recorrente METALFORTE – Industria Metalúrgica LTDA. Recorrido: Delegacia da Receita Federal em Goiânia. Relator: Conselheiro Adelmo da Silva Martins. Distrito Federal, 14 de junho de 1994.

[3] SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Impostos e Taxas. Sessão de Câmaras Reunidas. Questão de Ordem Regimental nº 09. Proc. SF. Nº 2.713/1995. Suscitante: Juiz Antônio Carlos da Silva. Relator: Adermir Ramos da Silva. São Paulo, 30 de maio de 1995.

[4] MARTINS, Ives Gandra da Silva. Processo administrativo tributário (Pesquisas Tributárias, Nova Série, nº 5). Editora Revista dos Tribunais: Centro de Extensão Universitária. São Paulo, 1999.

[5] Nomes como os de Ricardo Lobo Torres, Sacha Calmon Navarro Coêlho, Ricardo Mariz de Oliveira, Diva Malerbi, Fernando Facury Scaff, Marco Aurélio Greco, Hugo de Brito Machado etc.

[6] XAVIER, Alberto. A Questão da Apreciação da Inconstitucionalidade das Leis pelos Órgãos Judicantes da Administração Fazendária. Revista Dialética de Direito Tributário, v. 103, 2004.

[7] LUKIC, Melina Rocha. A análise da (in)constitucionalidade no processo administrativo fiscal. Revista de Direito Administrativo, v. 259, 8 maio 2013.

[8] BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, p. 92-95. 2016.

[9] Ver SWAN, Alan C.. Administrative Adjudication of Constitutional Questions: Confusion in Florida Law and a Dying Misconception in Federal Law. University of Miami Law Review, v. 33, n. 3, p 594 600. 1979; e GREER, C Stuart. Expanding the Judicial Power of the Administrative Law Judge to Establish Efficiency and Fairness in Administrative Adjudication. University of Richmond Law Review, v. 27, n. 103, p. 108, 1992.

[10] Gelblum, Yonatan, The Tenth Circuit’s Nuanced Approach to Administrative Exhaustion of Constitutional Claims (July 19, 2024). 102(2) Denver Law Review (forthcoming, 2025), Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=4920525 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.4920525.

[11] MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro : Administrativo e Judicial. 13ª edição.

rev. e atual. São Paulo. Thomson Reuters Brasil. Título II, Capítulo 8º, p. 429-445., 2020.

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