O papel do comitê gestor do IBS na regulamentação da transação

A reforma tributária do consumo convenceu 27 estados, 5.570 municípios e a União a abrirem mão de parte de sua autonomia  na esperança de um sistema tributário mais simples. Em comum, talvez tivessem apenas a compreensão de que a complexidade compromete a própria arrecadação e que, sem arrecadação, não há autonomia.

Paradoxalmente, a Emenda Constitucional 132, de 2023 e os Projetos de Lei Complementar em trâmite para sua regulamentação[1] são lacônicos – quando não são omissos – quanto aos instrumentos indispensáveis para que a arrecadação aconteça, como o contencioso judicial tributário e os meios alternativos de solução de controvérsias.

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A transação, um dos modos mais bem-sucedidos[2] de arrecadação na atualidade, não é objeto da reforma e, mesmo outros projetos de lei em trâmite[3] não chegam a analisá-la sob a perspectiva do IBS e da CBS. O problema que se coloca, portanto, é o vácuo normativo sobre como a transação de tributos idênticos será tratada pelos mais de 5.000 entes.

A proposta da reforma é eliminar (ou, pelo menos, reduzir) os mais de 5.500 microssistemas normativos de ICMS, ISS e PIS/Cofins em troca de lei complementar com validade nacional[4].

Ocorre que nem toda a regulamentação tributária se exaure na lei complementar. Leis ordinárias, decretos e portarias são necessários para o funcionamento do sistema. Era preciso uma instância que consolidasse ou uniformizasse leis ordinárias e normas infralegais dos estados e municípios.

Para isso, o constituinte derivado imaginou o Comitê Gestor do IBS – CGIBS (art. 156-B da CF). Faltou prever, entretanto, como o CGIBS vai cumprir a obrigação de uniformizar as legislações dos entes sem desrespeitar os Poderes Legislativo e Executivo de cada qual. Afinal, cada ente precisa de uma lei processual própria para o IBS, como afirmação de sua autonomia, ou há possibilidade de consolidação das normas locais sem desrespeito à autonomia federativa?

A regulamentação da transação está contida nessa encruzilhada. Parte dela está reservada à lei complementar na medida em que importa em extinção do crédito tributário, constituição da obrigação, suspensão de sua exigibilidade (art. 146, III, da CF). O art. 171 do CTN, também uma lei complementar, conceitua a transação e delega a sua regulamentação à lei.

Com base nesses artigos, a União começou a celebrar a transação a partir da  Lei 13.988, de 2020 e, hoje, pelo menos 15[5] dos 27 estados da Federação, além de vários municípios[6], possuem suas próprias leis ordinárias de transação. Essa realidade informa que o instituto depende de lei complementar, nacional, e também de leis ordinárias de cada ente.

As próprias leis de transação municipais, estaduais e federal, hoje vigentes, mostram a trilha a ser seguida para segregar matérias privativas de cada ente daquelas que, por lógica ou por delimitação de competências constitucionais, devem ser reservadas à lei complementar.

A lei complementar é necessária, antes e depois do IBS e da CBS, na medida em que obriga todos os entes da federação a tratar o contribuinte do mesmo modo (art. 146, I, da CF). As normas que tratam dos compromissos de renúncia e desistência de ações em curso e das modalidades possíveis de transação são repetidas em todas as leis consultadas.

Essas normas constarão no art. 171 do CTN, conforme a tramitação do PLP 124, de 2022 avança. Esse PLP, no entanto, precisa ir além, para regular o momento da extinção do crédito e a previsão de parcelamento ou compensação como causa de suspensão de exigibilidade; as hipóteses de rescisão e de quarentena; as vedações de acesso a determinados contribuintes e as garantias de devido processo legal. Elas dizem respeito à natureza do instituto e a direitos e deveres do contribuinte com a Administração, qualquer que seja a esfera federativa.

Por outro lado, quase todas as leis consultadas delegam a atos infralegais a fixação dos parâmetros de descontos, graus de recuperabilidade da dívida e rating de devedores. O conteúdo das concessões a serem abertas ao contribuinte em troca da arrecadação imediata depende da iniciativa legislativa e regulamentar de cada ente. As decisões sobre como executar seu orçamento e qual o tamanho dele são de competência exclusiva de cada ente a partir dos dados de sua realidade econômico-financeira.

A responsabilidade fiscal decorrente da renúncia à arrecadação integral é do próprio ente, que será o maior prejudicado caso calcule mal, falhe na sua avaliação ou prefira a inércia de copiar parâmetros de transação calculados por outro ente. A faculdade de controlar a vantajosidade deve ser garantida ao ente. E a vantajosidade é fluida como o mercado, ela depende de monitoramento constante. Os entes devem estar livres para, de tempos em tempos, abrir ou fechar prazos ou oportunidades de transação das modalidades que entenderem interessantes para sua realidade.

O mesmo raciocínio vale para a transação do contencioso de relevante e disseminada controvérsia. Cada ente deve poder decidir se oportuniza, ou não, a transação de teses e de quais teses. Só assim se preserva seu controle sobre a vantajosidade ou não da política pública. Isso porque, neste caso, o ente poderá mapear todos os processos judiciais que tratam de determinado assunto ou tese, quantificar o valor global envolvido naquela controvérsia, analisar as estratégias de atuação judicial e decidir se vale a pena, ou não, a abertura de transação para aquela tese.

Se o instituto da transação for levado a sério, os compromissos assumidos pelo contribuinte, ao aderir à transação do contencioso de relevante controvérsia de IBS aberta pelo Estado B, não serão afetados por eventual vitória deste mesmo contribuinte contra o Estado A, ainda que com base na mesma tese. É que esse contribuinte terá renunciado ao direito de discutir a tese com o Estado B, haja o que houver, ou independentemente do que haja na sua relação com o Estado A.

A preservação de competências normativas dos entes pode e deve ser buscada em soluções tecnológicas que aglutinem e organizem, entre menus, filtros e ferramentas, as concessões recíprocas definidas por cada um dos entes em favor dos seus contribuintes. Cada contribuinte selecionaria cada uma de suas dívidas com cada ente federado (ou o percentual da dívida com cada qual, caso se opte por lançamento unificado) para decidir sobre a adesão ou não a esta ou àquela transação.

A aplicabilidade da transação ao IBS e à CBS vem sendo questionada sob o argumento de que o instituto pressupõe a unanimidade de todos os entes, como se eles fossem obrigados a entregar ao CGIBS um consenso quanto à escolha dos critérios e da tese a transacionar, ou como se o CGIBS fosse responsável por ditar esses critérios e parâmetros.

Não são. O argumento subverte a lógica do art. 156-B, caput, e § 2ª, inciso V, da CF, segundo o qual o sujeito ativo do IBS segue sendo cada um e todos os entes federados, em relação aos quais o Comitê existe para servir como núcleo de assistência especializada, laboratório de inovação, espécie de centro logístico destinado a receber, triar, processar, distribuir, devolver, reter, arrecadar e repartir.

Cabe ao Comitê Gestor do IBS desenvolver, a serviço dos entes federados, soluções tecnológicas para integrar as normas jurídicas nacionais e obrigatórias às normas jurídicas específicas de cada ente e transformá-las em camadas de funcionalidades acessíveis aos contribuintes. Ao CGIBS, destituído de legitimidade para criar, decidir, alterar ou extinguir direitos e deveres, cabe operacionalizar as concessões recíprocas transacionadas entre entes e contribuintes.


[1] Quando da elaboração deste texto, o PLP 68/2024 recém aprovado, não havia sido sancionado. Projeto de Lei Complementar nº 68, de 2024 e Projeto de Lei Complementar nº 108, de 2024.

[2] Entre janeiro e setembro de 2024, a União recuperou R$ 24,6 bilhões por meio de transações. Acessível em: https://www.jota.info/tributos/pgfn-arrecadou-r-246-bilhoes-com-transacoes-tributarias-em-2024

[3]  Projeto de Lei Complementar nº 124, de 2022, juntamente com o PL 2.483/2022, e o PL 2.486/2022, que compõem a denominada Reforma do Processo Tributário

[4] Arts. 149-B, 156-A e 156-B da CF da CF.

[5] Estado do Amazonas Lei nº 6.289/2023; Estado da Bahia: Lei nº 14.727, de 2024;  Estado do Ceará: Lei nº 18.706, de 2024; Estado do Espírito Santo: LC 1097, de 2023; Estado de Goiás: LC 197, de 2024; Estado do Maranhão: Lei nº 11.368, de 2020; Estado do Mato Grosso do Sul: Lei nº 6.032, de 2022; Estado Pará: Lei 9.260, de 2021; Estado da Paraíba: Lei nº 12.036, de 2021; Estado do Paraná: Lei nº21.860, de 2023; Estado de Pernambuco: LC nº 546, de 2024; Estado Piauí: LC 297, 2024; Estado de Roraima: Lei 13.140, de 26 de junho de 2015; (Portaria PGE RR 615/2024); Estado de São Paulo: Lei nº 17.843, de 2023; Estado de Sergipe: Lei 8.911/1991

[6] Município do Rio de Janeiro, Lei nº 5966, de 22 de setembro 2015, Decreto rio nº 53.595, de 23 de novembro de 2023; município de Blumenau Lei nº 8532, de 13 de dezembro de 2017.

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