Procurador diz que proposta de plano de saúde sem pronto-socorro desrespeita a lei

A proposta da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) de criar um plano que ofereça apenas consultas e exames, a princípio deve ser considerada ilegal, afirma o coordenador do grupo de trabalho de Planos de Saúde da Procuradoria Geral da República, Hilton Melo.

De acordo com ele, a ideia, mesmo que seja avaliada dentro de um ambiente regulatório experimental, precisa garantir para usuários o atendimento de urgência. “Seria uma contrariedade flagrante ao texto da lei fazer um experimento onde o paciente ficaria à própria sorte, à mercê de referenciação no sistema público. Algum gatilho para fazer essa referenciação experimental vai ter que ser discutido”, afirmou, em entrevista ao JOTA.

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O procurador também se diz preocupado com o risco de haver uma ampliação dos planos subsegmentados e redução de oferta de planos hospitalares, sobretudo no caso de contratos por adesão. Afirma, ainda, ter dúvidas sobre como seria feito o referenciamento de clientes atendidos neste plano em experimentação para serviços do Sistema Único de Saúde.

A criação de um plano de menor cobertura é uma reivindicação antiga de planos de saúde. Neste desenho, consumidores interessados teriam direito a um plano básico, apenas com exames e consultas programadas, mediante o pagamento de baixas mensalidades. Em casos mais graves, o paciente seria encaminhado para o Sistema Único de Saúde.

A seguir, principais trechos da entrevista:

A proposta de um plano restrito a consultas e exames que será avaliada no sandbox desrespeita a lei de planos de saúde? 

O que estiver sendo experimentado no sandbox não pode violar a lei, porque não existe inclusive autorização legal para isso.  Se a Lei 9656/98 (que regulamenta o setor) autorizasse desenhos inovativos, experimentações, isso seria possível. Mas não há autorização legal para tanto.

Então essa proposta afronta a lei… 

Existe hoje uma disposição expressa dizendo que quem entrar no pronto-socorro precisa ser atendido. Parece ser um conflito mais aparente de normas. Se dentro do experimento nós tivermos salvaguardas para garantir atendimento, a depender do desenho que a ANS colocar, nós vemos espaço para experimentar.

O que nós não podemos, aí sim seria a contrariedade flagrante do texto da lei, é fazer um experimento onde a gente deixa esse paciente que está dentro do experimento, completamente à própria sorte, à mercê de referenciação no sistema público. Então, algum gatilho para fazer essa referenciação experimental vai ter que ser discutido.

A proposta lida com assistência à saúde e, consequentemente, com vidas. Como um acompanhar uma mudança como essa, mesmo num sandbox? 

Vou fazer um comentário que ainda guarda muita nota de especulação, afinal, não temos uma realidade concreta para nos debruçar. O principal argumento que as operadoras sustentam é de que haveria uma oferta de um produto para classes C e D.

A retaguarda para os serviços que os planos deixariam de cobrir seria o SUS. Vemos aí o maior gargalo: o gerenciamento da intercomunicabilidade entre os dois sistemas. Se o argumento é que o SUS dará saída para as demandas que os planos sub segmentados deixarão de cobrir, vamos ver como será essa forma de gatilho e como isso se dará na prática. Você está percebendo um pouco de ceticismo na minha fala….

Seria uma fila paralela no SUS? Isso é possível?

Ele vai ter que entrar em uma rede de referenciação, em uma fila de referenciação. Vamos ver as soluções pensadas pela ANS. Vamos ver no que vai redundar

O Ministério Público Federal vai acompanhar? Como?

O grupo de trabalho Planos de Saúde da Procuradoria Geral da República, do qual eu sou o atual coordenador, decidiu abrir um procedimento de acompanhamento. Ele não tem natureza investigativa, não é um inquérito civil, é um procedimento de acompanhamento no âmbito da PGR.  Vamos tomar a pé sobre todas as normativas, porque inclusive a própria resolução normativa que disciplina o sandbox é recente.

Nós temos uma discussão histórica, por exemplo, sobre prontuário integrado entre SUS e saúde suplementar. Há no relatório do deputado Duarte Júnior, sobre a revisão da Lei de Planos, a previsão do prontuário eletrônico, dos dois sistemas começarem a se comunicar. Mas isso de forma dialogada, com a chancela do Ministério da Saúde.

É preciso entender se esse desafogamento imediato do SUS, que vai acontecer com consultas e exames, não vai redundar numa fechada de porta imediata, porque imediatamente nós teremos um número mais expressivo de solicitações de internações de média e alta complexidade.

Mas todos esses pontos não teriam de ser discutidos antes da oferta de um produto?

Concordo. Os colegas que demandarem esses primeiros encontros, vão estar certamente endereçando essas preocupações.

Vocês vão participar da Consulta Pública?

Vamos enviar contribuições, vamos discutir com promotores de justiça, defensores públicos, com o IDEC e Senacom (Secretaria Nacional do Consumidor) e com operadoras. Elas têm muito contato com a gente, a própria Abramge vai fazer uma reunião com a gente na PGR no início do próximo mês. Conversamos com todos, até porque a nossa defesa não é uma defesa monocular do consumidor, a gente precisa ter uma defesa sistêmica, porque a gente quer que isso fique de pé.

O setor de planos de saúde se queixou de que o prazo para consulta pública sobre política de preços era pequeno. Neste caso, de uma proposta com potencial de mudar o mercado, a crítica também não deve ser a mesma? Esse tempo não é pouco?

Concordo que parece, sim. Agora, é o prazo regulamentar. Vamos analisar objetivamente e subjetivamente também a pertinência desse tempo, considerando também que não é uma resolução para acontecer para amanhã, uma resolução que fala em um experimento dentro de uma caixinha de areia. Então, não vai estar largado ao mercado. Isso tudo a gente leva em consideração para saber que a gente está falando de algo que vai ser mitigado.

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Que garantias temos que um plano como esse não vai mudar totalmente o mercado, como ocorreu com a drástica redução, provocada pelas próprias operadoras, da oferta de planos individuais?  

Nós temos só 50 milhões de brasileiros com plano de saúde, tem aí talvez 30, 40 milhões, no melhor dos olhos, que poderiam ter esse plano popular e aí a gente vai melhorar a vida de 30, 40 milhões de pessoas. Mas o problema é exatamente a mensagem que isso pode induzir em termos de incentivos para o mercado. Há risco de sub segmentações tomarem conta e, daqui a pouco, a gente ter uma suboferta ou até precária oferta de planos que façam um atendimento por internação também. Não tenho nenhuma dúvida. Talvez o pior sinal que a gente pode indicar para o mercado é uma possível liberação desses termos.

Mas como isso poderia ser evitado?

Se o regulador perceber que para oferecer um sistema de saúde suplementar válido, efetivo, que não destrua o SUS, seja uma mensagem ao mercado dizendo que determinado produto não pode ser lançado ou não pode ser comercializado, temos de reconhecer a validade dessa norma.

A ANS já existia e não conseguiu inibir a drástica redução de planos individuais. Por que agora seria diferente?

Antes da Lei 9656, o mercado era selvagem. A Agência foi criada pouco depois da lei e ganhou maioridade. Tem 25 anos. Há muito tempo o Ministério Público Federal adverte, inclusive já recomendou, mudanças. Não podemos desconsiderar que abrir a Consulta Pública 145 (com regras para a nova política de preços de planos) atende a esse reclamo.

A agência está tentando reestruturar e dentro do relatório de análise de impacto regulatório, pelo menos menciona-se o problema da escassez de oferta dos planos individuais. Então ela está ali tentando entender a própria missão.

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