Presidencialismo de colisão: uma análise da dinâmica política brasileira

Mais de três décadas após a publicação do célebre artigo de Sérgio Abranches (1988), o conceito de “presidencialismo de coalizão” continua a ocupar um lugar central nas discussões sobre política no cotidiano.

Embora muitas vezes reduzido a uma simples troca de favores, ou “toma lá, dá cá”, o processo de construção das coalizões de governo está longe de ser um mero jogo de interesses. Na realidade, as coalizões representam acordos complexos entre partidos e seus líderes, que buscam compartilhar recursos e poder com o intuito de alcançar objetivos comuns.

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Entretanto, desde o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, o conceito de Abranches se mostrou insuficiente para descrever a atual dinâmica brasileira. O aumento no protagonismo orçamentário do Legislativo nos últimos anos tem deslocado a centralidade das decisões do Executivo para o Congresso Nacional.

Nesse cenário, a distribuição de cargos e ministérios por parte do governo não garante fidelidade programática de seus aliados, mas apenas assegura uma base mínima de apoio parlamentar. Embora a fragmentação partidária tenha diminuído em relação ao período anterior, ela continua sendo um desafio significativo para a governabilidade, uma vez que a capacidade de articulação política se torna cada vez mais dispendiosa.

Marcos Nobre, professor da Unicamp e presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), chama o fenômeno de “presidencialismo flex”, ou de conveniência: um governo sem maioria que precisa lidar com parlamentares que votam de acordo com os próprios interesses.

O Brasil é marcado por uma dispersão partidária que resulta em alianças inéditas que beiram a medida do “pragmatismo aceitável” pela sociedade, em que a lógica das concessões de princípios se torna, na maioria dos casos, inevitável. Para manter-se relevante no debate político nacional, um partido precisa fazer concessões pontuais, firmando acordos e ocupando cargos, independentemente de suas afinidades ideológicas.

No terceiro ano do governo Lula 3, falar em governabilidade é falar em reforma ministerial. A redistribuição de cargos na Esplanada é crucial para garantir uma base sólida de apoio no Congresso. Contudo, o Executivo tem perdido progressivamente o protagonismo e o controle sobre o orçamento, que cada vez mais se encontra sob o domínio do Legislativo.

Em um cenário em que o governo não consegue mais pautar a agenda do país, os partidos do centrão emergem como protagonistas nas negociações de ministérios e na aprovação de projetos no Congresso. Esse fenômeno, por sua vez, torna cada vez mais caro o preço do apoio parlamentar. Um governo fraco significa, por muitas vezes, um Legislativo forte.

A demonização das emendas parlamentares, que são frequentemente associadas à corrupção ou ao clientelismo, carece de um debate mais aprofundado. Em vez de reduzir a questão a uma retórica simplista, é preciso refletir sobre como garantir maior transparência e equidade na distribuição de recursos sem comprometer a autonomia do Parlamento ou agravar as distorções nas bases municipais. Esta questão, longe de ser trivial, exige uma reflexão complexa e multidimensional.

Passados mais de 30 anos desde a proposição de Abranches, parece cada vez mais evidente que a tentativa de definir uma dinâmica política estática e imutável, como ele fez, se tornou uma tarefa complexa e, em muitos casos, impossível. A fragmentação, a crescente dependência do Executivo em relação ao Legislativo, e as novas formas de negociação de poder desafiam qualquer tentativa de categorização. Talvez estejamos vivendo um momento de transição histórica, em que as regras do jogo político estão sendo reescritas diante de nossos olhos.

O que sabemos, no entanto, é que o governo precisa reconhecer que está em rota de colisão com uma realidade que exige uma profunda revisão de seus métodos de governabilidade e de suas formas de articulação no Congresso. Os resultados dessa transição permanecem incertos, mas a capacidade de adaptação às novas demandas e à lógica da política de coalizão será crucial para o sucesso governamental nos próximos anos.

Aqui, trago uma reflexão que remete a Norberto Bobbio, que, em O futuro da democracia (1984), nos ensina que “acreditamos saber que existe uma saída, mas não sabemos onde está. Não havendo ninguém do lado de fora que nos possa indicá-la, devemos procurá-la por nós mesmos. O que o labirinto ensina não é onde está a saída, mas quais são os caminhos que não levam a lugar algum”.

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