Sem peias na corrida pelo desenvolvimento tecnológico

No ato em que revoga as diretrizes do governo Biden sobre Inteligência Artificial, Trump afirma que a política anterior era uma “barreira à inovação em IA” e que os sistemas de IA deveriam estar “livres de vieses ideológicos ou agendas sociais”, uma referência também à regulação da moderação de conteúdo por plataformas digitais, já refletida no posicionamento recente de Big Techs.

Movimento semelhante se observa na experiência britânica, em que o novo governo trabalhista segue uma linha branda na regulação da IA e acaba de substituir o diretor da autoridade concorrencial, a Competition Markets Authority, autoridade que até então, além publicar documentos contra uma potencial dominação dos mercados de IA, propunha regras concorrenciais restritivas à atuação de Big Techs. Segundo o Primeiro Ministro Britânico, o governo anterior estaria se “escondendo atrás de reguladores” ou que seria sinal de fraqueza e falta de compromisso com o crescimento e desenvolvimento tecnológico.

A guinada de Trump em relação a Biden, que se aproximava cada vez mais da abordagem europeia, significa uma virada no mosaico geopolítico em torno das tecnologias digitais. Note-se que o governo anterior promoveu e assinou documento no âmbito do G7 (do qual a China não participa) quanto a princípios e Código de Conduta de IA, que estabelecem, além de modelos de governança para mitigação de riscos, compromissos de pesquisa e desenvolvimento responsável de IA.

A referência e força motriz no posicionamento das grandes potências econômicas mundiais é a China, que assumidamente, em sua estratégia nacional de IA, vê a tecnologia como veículo para a dominação econômica global e que acaba de dar uma cartada com o lançamento pela Deep Seek, startup chinesa, de modelo de linguagem em código aberto com alta eficiência e custo otimizado, hoje um dos aplicativos mais baixados nos EUA.

No lugar de uma corrida espacial, que simbolizava a divisão geopolítica do pós-guerra, temos agora uma corrida pelo domínio de grandes modelos fundacionais de inteligência artificial, que seriam a chave para o domínio da tecnologia, e consequentemente, da economia, no cenário global.

No cenário anterior, a Europa, atrasada em relação aos norte-americanos e à potência chinesa, traçou uma estratégia centrada na liderança quanto aos padrões de qualidade de tecnologias digitais, que deveriam ser compatíveis com o exercício de direitos humanos, em particular quanto a privacidade e proteção de dados pessoais, e com a proteção do meio ambiente, por meio de eficiência energética e primazia a recursos renováveis.

Em 2018 via-se Emmanuel Macron afirmando que o modelo estadounidense de desenvolvimento tecnológico e de IA não seria sustentável, por não ser regulado, faltando-lhe prestação de contas política perante os cidadãos. De lá para cá, a Europa editou cerca de 80 documentos legislativos para regular o ambiente digital, sendo os mais relevantes, na esteira da legislação de proteção de dados, a regulação de concorrência entre plataformas, da moderação de conteúdo, do compartilhamento de dados e da inteligência artificial.

A estratégia teve sucesso no sentido de promover uma “soberania normativa” europeia, ao influenciar legislações ao redor do mundo, inclusive no Brasil, no chamado “efeito Bruxelas”. Mas ainda não se refletiu em soberania econômica. Nenhuma das empresas top 10 do mercado digital é europeia. Nenhum dos 12 unicórnios mais valiosos é europeu.

Na corrida pela conquista dos grandes modelos fundacionais de IA, os principais desenvolvedores franceses e alemães, que enfatizam segurança de dados e soberania de dados pelos usuários em seus modelos, têm conseguido levantar fundos privados da ordem de dezenas ou no máximo algumas centenas de milhões de dólares, algo muito longe dos US$ 11 bilhões levantados para o desenvolvimento do ChatGPT pela Open AI.

A Hugging Face, startup lançada por três franceses e que é hoje a maior plataforma a hospedar sistemas de IA e ligar desenvolvedores, já migrou para os Estados Unidos e tem parceria com a Amazon Web Services.

A aproximação dos EUA significava um trunfo para os europeus se posicionarem e abrirem espaço para o desenvolvimento de suas empresas, ao estabelecer o padrão de “responsabilidade” tecnológica, reduzindo gradualmente medidas protecionistas contra os norte-americanos e elevando barreiras de qualidade ao lado de medidas protecionistas norte-americanas contra os chineses. No novo cenário, os europeus se enfraquecem.

É certo que eficiência e responsabilidade são metas contrapostas e que precisam encontrar equilíbrio, para proporcionar uma tecnologia sustentável e compatível com valores humanos. A questão é como o Brasil deve se posicionar nesse novo cenário em que os líderes globais privilegiam a eficiência e abrem uma disputa sem peias. A última cartada chinesa mostra que podemos e precisamos encontrar um caminho que não se reduza a “imitar a Europa” ou “imitar os EUA”.

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