Orçamento, impeachment e Pé-de-Meia: 2025 inicia desafiador para o Direito Financeiro

O ano de 2025 não começa bem para o Direito Financeiro – o que não chega a ser uma novidade. A LDO 2025 (Lei 15.080/2024), que deveria ter sido aprovada até o dia 17 de julho do ano passado, só foi publicada em 30 de dezembro, com seis meses de atraso.

Além disso, a lei orçamentária, que deveria ter sido publicada até o final do ano, ainda não foi aprovada, fazendo com que o exercício financeiro se inicie com a execução do orçamento de forma provisória e parcial.

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E o Direito Financeiro novamente protagoniza um pedido de impeachment do presidente da República por descumprimento de regras orçamentárias[1]. A denúncia por crime de responsabilidade, apresentada por 118 deputados federais, fundamenta-se em atos que atentam contra a lei orçamentária e em ilegalidades financeiras no âmbito do programa Pé-de-Meia, instituído pela Lei 14.818/2024.

Esse assunto já vinha sendo amplamente divulgado e debatido, tendo sido abordado em texto publicado neste mesmo espaço em setembro de 2024[2], e que se intensificou a partir da publicação do Acórdão 61/2025 do TCU (sessão de 22/1), cujas conclusões apontam de forma clara irregularidades na execução do programa.

O retorno das normas de Direito Financeiro ao centro das atenções, especialmente em razão de uma denúncia apresentada por um número expressivo de deputados e embasada em análise técnica do Tribunal de Contas da União, merece uma análise mais detalhada. Afinal, um processo desse tipo pode levar ao afastamento de um presidente da República, como já ocorreu em 2016 com a ex-presidente Dilma Rousseff.

O programa Pé-de-Meia é uma iniciativa do governo federal que oferece incentivos financeiros a estudantes de baixa renda matriculados no ensino médio público, com o objetivo de reduzir a evasão escolar e incentivar a conclusão dos estudos, beneficiando jovens de 14 a 24 anos no ensino médio regular ou de 19 a 24 anos na educação de jovens e adultos, e estudantes de escolas públicas inscritos no CadÚnico.

Prevê benefícios como incentivo-matrícula (R$ 200 no início do ano letivo), incentivo-frequência (R$ 200 por mês, até R$ 1.800 por ano), incentivo-conclusão (R$ 1.000 por ano concluído), incentivo-Enem (R$ 200 para quem fizer a prova no 3º ano), visando com isso garantir a permanência dos estudantes na escola, reduzindo a desigualdade educacional no Brasil. Um programa com ótimos propósitos, como se pode constatar, e muito elogiado como instrumento de fomento ao desenvolvimento da educação.

E qual a razão e fundamento das críticas?

A questão central está na forma como a execução financeira do programa foi estruturada. Sendo uma política pública financiada com recursos orçamentários, o regime jurídico aplicável deve seguir estritamente as normas de Direito Financeiro. No entanto, uma série de inconsistências vem sendo apontada.

As normas de Direito Financeiro são bastante rígidas, pois regulamentam o uso dos recursos públicos, exigindo transparência e boa gestão. Princípios como o da universalidade, que determina a inclusão de todas as receitas e despesas no orçamento; o da unidade, que impede a criação de “orçamentos paralelos”; e o da legalidade, que veda a execução de despesas sem autorização legal, constituem a base do arcabouço normativo de proteção dos recursos públicos, assegurando a higidez e transparência nas contas públicas.

Basta ver a polêmica das emendas parlamentares, que há anos ocupa a agenda nacional e se mantém na ordem do dia, causando atrito entre os Poderes, e envolve justamente a transparência e boa gestão de uma pequena parte do orçamento público, em que os parlamentares têm protagonismo na definição de seu destino. E quando se fala em pequena parte, em se tratando de orçamento público, especialmente federal, não estamos falando em números absolutos, mas relativos, uma vez que nesse campo os valores são altamente expressivos – o que só justifica a atenção que se deve dar ao tema.

Tanto assim é que há crimes de responsabilidade, que podem levar ao impeachment do presidente da República – como de fato já ocorreu não faz muito tempo – relacionados a irregularidades em matéria orçamentária. A Lei do Impeachment (Lei 1079/50 e atualizações) tem todo um capítulo (Capítulo VI) para tipificar as condutas que caracterizam os “crimes contra a lei orçamentária”, que, somados aos capítulos V (dos crimes contra a probidade na administração) e VII (dos crimes contra a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos), oferecem um amplo e rigoroso arcabouço normativo sancionador para lhe conferir força e coesão.

Em matéria orçamentária, não basta ter boas intenções; é essencial respeitar rigorosamente o ordenamento jurídico, única forma de garantir o respeito à democracia e à soberania popular na alocação dos recursos públicos.

No caso do programa Pé-de-Meia, foram adotados diversos mecanismos operacionais que resultaram na “desorçamentação” dos recursos, ou seja, na execução financeira fora do regime jurídico orçamentário. Isso contraria princípios e normas de Direito Financeiro.

A “fuga” do regime jurídico orçamentário não é novidade. Desde a criação dos orçamentos públicos, a rigidez das regras, razão que fundamenta vários dos princípios orçamentários, sempre gerou tentativas de contorná-las. Afinal, tolhem a liberdade do gestor dos recursos e por consequência do poder que dispõe de alocá-los da forma que melhor lhe convenha. No entanto, o respeito a essas normas é essencial para garantir que os recursos, que pertencem à sociedade, sejam administrados de forma legal e transparente.

O programa Pé-de-Meia possui várias fontes de recursos originalmente públicos, como os superávits do Fundo Social, do Fundo Garantidor de Operações de Crédito Educativo (Fgeduc) e do Fundo Garantidor de Operações (FGO), conforme previsto na legislação que o instituiu.

A União utilizou parte desses recursos para integralizar as cotas do Fundo de Incentivo à Permanência no Ensino Médio (Fipem), de onde são extraídos os recursos para financiar o programa. O problema é que o Fipem foi criado na forma de um fundo privado, com patrimônio próprio, administrado pela Caixa Econômica Federal.[3]

Dessa forma, criou-se uma estrutura operacional em que recursos públicos financiam um programa público para atender uma necessidade pública, mas são intermediados por um fundo com natureza privada. No entanto, esse fundo foi criado por lei, é composto por recursos da União, administrado por um banco estatal e destina seus recursos conforme critérios estabelecidos pela legislação. Evidencia-se, assim, um mecanismo jurídico cujo objetivo parece ser a “desorçamentação” dos recursos, retirando-os artificialmente do regime jurídico orçamentário.

O TCU, no acórdão mencionado, apontou que a integralização das cotas do Fipem com recursos do Fgeduc e do FGO ocorreu sem que esses valores transitassem pela Conta Única do Tesouro Nacional (CUTN), ou seja, sem passar pelo orçamento da União. Consequentemente, a entrega dos recursos aos beneficiários foi feita sem a devida autorização legal, violando o princípio da legalidade orçamentária e o artigo 167, incisos I e II, da Constituição.

Esses dispositivos vedam o início de programas não previstos na lei orçamentária e a realização de despesas sem crédito orçamentário correspondente. Além disso, a operação fere os princípios da unidade e da universalidade orçamentária[4], pois envolve despesas públicas executadas fora do orçamento.

A análise da lei que define os crimes de responsabilidade descreve condutas especificamente relacionadas ao orçamento e gasto de recursos públicos, entre os quais estão o art. 10, 2 (“são crimes de responsabilidade contra a lei orçamentária exceder ou transportar, sem autorização legal, as verbas do orçamento); o art.10, 4 (“são crimes de responsabilidade contra a lei orçamentária infringir, patentemente, e de qualquer modo, dispositivo de lei orçamentária”) e 11, 1 (“são crimes contra a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos ordenar despesas não autorizadas por lei ou em observância das prescrições legais relativas às mesmas”).

A entrega de recursos – claramente públicos e que deveriam integrar a lei orçamentária – aos respectivos beneficiários, sem passar pelo orçamento (e, portanto, sem autorização via processo legislativo orçamentário), evidencia a prática de condutas que podem configurar crimes de responsabilidade, o que é um péssimo exemplo para os gestores públicos, para o já tão maltratado Direito Financeiro, que perde ainda mais credibilidade, e para os beneficiários do programa, que serão os mais prejudicados por uma má gestão das finanças públicas, bem como uma ofensa à democracia. 


[1] Por que o Pé-de-Meia pode virar a “pedalada” de Lula e levar ao impeachment (Gazeta do Povo Revista, 118ª ed., fev. 2025, pp. 36-50)

[2] “Corram que o orçamento vem aí”, publicada em 26.9.2024 (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/corram-que-o-orcamento-vem-ai)

[3] A impropriedade e os riscos para a gestão fiscal responsável na utilização de fundos privados para gerenciar recursos públicos já foi abordada com propriedade no Estudo Técnico 02/2025, de janeiro de 2025, da Consultoria de Orçamentos e Fiscalização Financeira da Câmara do Deputados, ao tratar do FNDIT, de autoria de Dayson Almeida e Paulo Henrique Oliveira

[4] Constituição, art. 165, § 3º e Lei 4320/1964, arts. 2º, 3º, 5º e 6º

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