Crítica à proposta de limitação de voto único nas eleições para o Senado Federal

A Constituição Federal de 1988 consolidou no Brasil um modelo de democracia representativa que busca equilibrar a soberania popular e a pluralidade política. Democracia representativa, mais do que mero governo representativo, é doutrina compatível com as contemporâneas preocupações de construir e reconstruir instituições capazes de fomentar a ação progressista transformadora das práticas e instituições democráticas[1]. 

No que respeita à composição parlamentar do Senado Federal brasileiro, a Constituição Federal de 1988 estabelece que a renovação de dois terços das cadeiras se dá pelo sistema majoritário e o eleitor dispõe de dois votos nos pleitos para prover duas vagas (§ 2º do artigo 46[2]). Portanto, cada partido/coligação pode apresentar dois candidatos, o eleitor dispõe de dois votos e são eleitos os dois candidatos mais bem votados.

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Em 2 de dezembro de 2024, porém, foi apresentado pelo senador Randolfe Rodrigues (PT-AP) o PL (Projeto de Lei) 4.629 de 2024, que propõe alterar a Lei 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral), para estabelecer que, na renovação de dois terços do Senado Federal, cada eleitor disporá de apenas um voto, sendo eleitos os dois candidatos mais bem votados[3]. Em 9 de dezembro, foi apresentado o Requerimento 870, de 2024, para a retirada em caráter definitivo do projeto. Todavia, o ilustre Senador já manifestou sua intenção de levar adiante o debate junto com a proposta de reforma do Código Eleitoral, que será analisada pelo Senado em 2025[4]. O debate, portanto, torna-se premente e atual.

O presente artigo abordará os impactos constitucionais e democráticos de eventual nova proposta legislativa que, a exemplo do PL (Projeto de Lei) 4.629 de 2024, vise modificar as regras de renovação de dois terços do Senado Federal, restringindo o eleitor a escolher apenas um candidato em eleições de dois senadores a cada oito anos.

Violação ao Princípio da Igualdade do Voto

O artigo 1º da Constituição Federal define o Brasil como um Estado Democrático de Direito, afirmando que “todo poder emana do povo”. Nesse contexto, a soberania popular manifesta-se como o poder supremo de decisão, sendo essencial para conferir legitimidade ao exercício do poder estatal. Essa legitimidade é alcançada por meio do consenso expresso nas escolhas realizadas pelos cidadãos nas urnas[5]. Para assegurar a efetividade desse processo, diversos princípios constitucionais atuam como garantias fundamentais para o pleno exercício do direito ao voto.

O princípio da igualdade do voto, por exemplo, é um pilar do sistema democrático consagrado pela Constituição Federal de 1988. Previsto no artigo 14[6], ele estabelece que o voto deve ser universal, direto, secreto e ter o mesmo valor para todos os eleitores. Este princípio assegura que cada cidadão tenha igual influência na formação do governo e na escolha de seus representantes, sem distinção ou discriminação. 

A imposição do voto único, todavia, obrigaria o eleitor a escolher apenas um candidato, restringindo sua possibilidade de influenciar a ocupação das duas vagas disponíveis. Essa limitação comprometeria a liberdade de escolha, forçando o eleitor a priorizar apenas uma pauta ou ideologia, mesmo que tenha interesses diversos. Ao reduzir a capacidade de decisão, o sistema eleitoral deixaria de refletir plenamente a pluralidade de opiniões e demandas presentes na sociedade. 

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Noutras palavras, a redução da capacidade de decisão no sistema eleitoral compromete a representatividade e a legitimidade democrática, uma vez que o processo político deixa de refletir plenamente a pluralidade de opiniões e demandas existentes na sociedade. Consequentemente, o processo eleitoral ficaria menos representativo e menos democrático, diminuindo a diversidade de ideias e propostas necessárias para o fortalecimento de uma democracia pluralista.

Limitação da Pluralidade Política

A pluralidade de votos está diretamente vinculada ao princípio do pluralismo político (artigo 1º, inciso V[7]). Esse princípio assegura a coexistência de diferentes partidos, ideologias e movimentos, elementos essenciais para o funcionamento de uma democracia. Essa diversidade enriquece o debate democrático, proporcionando soluções mais equilibradas e abrangentes para os desafios da sociedade[8].

No caso do Senado, a possibilidade de eleger dois senadores na renovação de dois terços das cadeiras reflete a intenção constitucional de ampliar a diversidade política, permitindo que diferentes forças e agendas sejam representadas no mesmo pleito. Essa pluralidade é essencial para que a composição do Senado reflita a complexidade social, política e regional do Brasil. Em estados com três grandes forças políticas, por exemplo, o sistema atual permite que forças minoritárias dividam a segunda vaga, promovendo a diversidade. 

Com a proposta de restrição, porém, a força majoritária provavelmente conquistará ambas as vagas, enfraquecendo o equilíbrio previsto na Constituição e limitando a pluralidade partidária. Mais uma vez, grupos historicamente sub-representados, como populações indígenas, movimentos sociais ou defensores de pautas ambientais, enfrentariam ainda mais dificuldades para eleger representantes que defendam suas causas específicas.

Distorção da Representatividade no Senado

O Senado Federal, como se sabe, é concebido pela Constituição Federal de 1988 como a casa legislativa que assegura a representação igualitária dos estados da federação no âmbito do pacto federativo, sendo cada unidade federativa representada por três senadores, independentemente de sua população[9]. Essa paridade na representação reflete a lógica do federalismo brasileiro, no qual estados maiores ou menores têm o mesmo peso político no Senado, equilibrando interesses regionais[10] no cenário nacional.

O modelo vigente de renovação de dois terços do Senado permite que os eleitores conciliem interesses locais e pautas nacionais ao selecionar seus representantes. Esse sistema possibilita, por exemplo, que um cidadão vote em um candidato comprometido com as demandas da agricultura regional e, simultaneamente, em outro dedicado às questões ambientais, favorecendo uma composição legislativa que contemple diferentes prioridades e perspectivas.

Diante dessa perspectiva, o enfraquecimento do papel moderador do Senado representaria uma violação ao pacto federativo, princípio basilar consagrado pela Constituição de 1988, que assegura a coexistência harmônica e autônoma entre União, Estados e Municípios. Qualquer reforma que altere a forma de eleição para o Senado Federal deve ser vista com cautela, uma vez que pode comprometer a estrutura de equilíbrio e pluralismo político que sustenta o pacto federativo e, por extensão, a democracia brasileira[11].

Por fim, a proposta de limitar o número de votos nas eleições para a renovação de dois terços do Senado pode ser caracterizada como um retrocesso constitucional, pois compromete especialmente a máxima eficácia do direito ao voto. Essa limitação contraria o princípio da proibição do retrocesso[13], amplamente reconhecido na doutrina constitucional e pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), que estabelece que avanços na proteção de direitos fundamentais não podem ser desfeitos sem uma justificativa robusta, proporcional e voltada ao interesse público.

Considerações Finais

O regime democrático, consagrado pela Constituição Federal de 1988 assegura aos cidadãos a prerrogativa soberana de escolher livremente seus representantes políticos. Qualquer tentativa de restringir ou limitar essa capacidade de decisão afronta os princípios basilares que sustentam o Estado Democrático de Direito, configurando-se como um ataque à essência da soberania popular.

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O sistema eleitoral vigente, ao permitir múltiplos votos em distritos plurinominais, reforça a representatividade, a pluralidade política e a liberdade de escolha dos eleitores. A limitação proposta enfraquece o exercício pleno dessas prerrogativas, reduzindo a diversidade de representações políticas no Senado e limitando a expressão das demandas sociais e regionais. Tal restrição compromete não apenas o equilíbrio democrático, mas também a capacidade de o Senado cumprir seu papel constitucional como moderador federativo.

A manutenção do modelo eleitoral atual é imprescindível para preservar o equilíbrio federativo e assegurar a representatividade democrática de todos os estados e regiões da Federação. O Congresso Nacional, ao avaliar propostas de reforma eleitoral, deve observar rigorosamente os princípios constitucionais, priorizando medidas que consolidem os direitos políticos do eleitorado e fortaleçam a confiança nas instituições democráticas.

A proposta legislativa de limitar o voto a um único candidato nas eleições de renovação de dois terços do Senado Federal constitui, sob o prisma jurídico e político, um inequívoco retrocesso democrático. Tal medida transgride princípios fundamentais, como a soberania popular, o pluralismo político e a vedação de retrocessos no âmbito dos direitos e garantias fundamentais. Ademais, compromete avanços históricos conquistados na construção de uma democracia representativa e participativa.

Portanto, os desafios enfrentados pelo Senado Federal devem ser enfrentados por meio de soluções que promovam maior transparência, inclusão e engajamento do eleitorado no processo eleitoral, em vez de restringir direitos fundamentais. Reformas que limitam a soberania popular ou fragilizam os alicerces da democracia devem ser rejeitadas, sob pena de comprometer o pacto social e político estabelecido pela Constituição de 1988.


[1] CORVAL, P. R. D. S. (2015). Democracia representativa: Revisitando John Stuart Mill. Revista de informação legislativa, 52(206), pp. 245-270.

[2] Art. 46. O Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados e do Distrito Federal, eleitos segundo o princípio majoritário. (…) § 2º A representação de cada Estado e do Distrito Federal será renovada de quatro em quatro anos, alternadamente, por um e dois terços.

[3] Assim está redigida a proposta de alteração do Código eleitoral: Art. 83. Parágrafo único. Nas eleições que promovam a renovação de dois terços do Senado Federal, o eleitor disporá de um único voto, sendo eleitos os candidatos que obtiverem as duas maiores votações.” (NR)

[4] Disponível em: https://www.poder360.com.br/poder-congresso/proposta-para-alterar-eleicao-para-o-senado-sera-analisada-em-2025/; Acesso em 3 de janeiro de 2025.

[5] GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 7° Ed. São Paulo: Atlas Jurídico, 2011, p. 38.

[6] CF/88. Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: (…)

[7] CF/88. Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) V – o pluralismo político.

[8] Segundo Habermas, uma ordem jurídica é legítima quando garante, de forma igualitária, a autonomia de todos os cidadãos. Essa autonomia só é efetiva quando os destinatários do direito se reconhecem também como seus autores. Esses autores só são verdadeiramente livres ao participarem de processos legislativos estruturados de maneira que assegurem formas de comunicação capazes de justificar, racionalmente, que as regras estabelecidas mereçam concordância geral e fundamentada. Vide HABERMAS, Jürgen (2002). A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola, p. 242.

[9] CF/88. Art. 46 § 1º Cada Estado e o Distrito Federal elegerão três Senadores, com mandato de oito anos.

[10] RUBIATTI, B. D. C. (2017). Sistema de resolução de conflitos e o papel do Senado como câmara revisora no Bicameralismo Brasileiro. Revista Brasileira de Ciência Política, (23), pp. 35-74.

[11] CAMARGO, A. (1994). O novo pacto federativo. Revista do Serviço Público, 45(1), pp. 87-94

[12] SARLET, I. W. (2009). Notas sobre a assim designada proibição de retrocesso social no constitucionalismo latino-americano. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, Brasília, 75(3), pp. 116-149.

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