Empreendimentos de economia solidária

Como noticiado em grande parte dos portais de notícias nos últimos dias, foi recentemente sancionada a lei Paul Singer (Lei 15.068/2024), que regulamentou no país os empreendimentos de economia solidária (“EES”).

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A Lei 15.068/2024 materializa uma visão que é respeitável, cuja literatura teve impacto na academia brasileira. A chamada economia solidária tem por base a ideia de organização das atividades de produção e de comercialização de bens e de serviços, da distribuição, do consumo e do crédito, observados os princípios da autogestão, do comércio justo e solidário, da cooperação e da solidariedade, a gestão democrática e participativa, a distribuição equitativa das riquezas produzidas coletivamente, o desenvolvimento local, regional e territorial integrado e sustentável, o respeito aos ecossistemas, a preservação do meio ambiente e a valorização do ser humano, do trabalho e da cultura[1].

Essa forma de pensar contrapõe-se ao modelo mais conhecido e bem-sucedido de organização da atividade econômica nos países economicamente desenvolvidos, onde existe, na maior parte das vezes, uma desvinculação entre a propriedade e a gestão, assim como uma hierarquia clara entre os que tomam o risco do negócio e os que não o fazem diretamente (administradores não-sócios e trabalhadores, por exemplo). Independentemente disso, certos modelos coletivistas de organização da atividade econômica podem ser considerados efetivos, como acontece com as cooperativas brasileiras, em um nível inferior de complexidade e porte financeiro.

A Lei inseriu os empreendimentos de economia solidária no rol de pessoas jurídicas de direito privado no Código Civil brasileiro (art. 44, VII). Essa nova modalidade é caracterizada pela existência de um capital que é construído e titularizado coletivamente pelos membros, visando o exercício de uma atividade econômica onde os recursos gerados são reinvestidos na própria entidade ou na comunidade. Além disso, os membros são diretamente envolvidos na consecução de seu objetivo social[2].

Por exemplo, as cooperativas de agricultura familiar; as cooperativas de coleta e reciclagem; as empresas recuperadas assumidas pelos trabalhadores; as redes de produção, comercialização e consumo; os bancos comunitários e as cooperativas de crédito[3].

I -Apontamentos:

A Lei 15.068/2024 padece de incoerências normativas, sendo a  primeira delas à atecnia de incluir, no rol do art. 44 do CC, essa nova categoria de pessoa jurídica de direito privado. Um exemplo semelhante ocorreu há poucos anos com a Lei 12.441/2011, quando o legislador acrescentou o inciso VI ao mesmo artigo, criando a figura da EIRELI, que, na prática, teve pouca adesão.

Agora, o legislador comete um equívoco semelhante ao estabelecer, nos termos do art. 4º, § 1º[4] da nova lei, um enquadramento como uma nova pessoa jurídica. Essa abordagem é claramente inadequada, pois os empreendimentos se vinculam aos tipos societários já previstos ou às demais pessoas jurídicas de direito privado listadas no art. 44 do CC, desde que compatíveis[5].

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Por exemplo, os EES seriam uma espécie de “carimbo” para pessoas jurídicas de direito privado já existentes. Assim, se uma sociedade (art. 44, III, CC) possuir as características descritas na lei (art. 4º), será considerada uma “sociedade empreendimento de economia solidária” e, consequentemente, poderá ser beneficiária da Política Nacional de Economia Solidária. Nota-se, portanto, que a caracterização como EES não cria uma nova pessoa jurídica, mas apenas atribui um novo enquadramento que permite o acesso aos benefícios legalmente previstos.

Em linha com essa contradição, outro argumento pertinente diz respeito ao conflito de normas. O art. 4º, § 1º da lei estabelece que o enquadramento de um empreendimento como de economia solidária independe de sua forma societária. No entanto, caso uma sociedade limitada, que possui quóruns próprios definidos pelo Código Civil, opte por esse enquadramento, deverá sempre se submeter à regra geral da singularidade dos votos dos EES (art. 4º, I)[6]?

Outro problema dessa nova lei está relacionado aos termos como “preço justo” e “comércio justo e solidário”. No contexto da lei, essas expressões aparecem logo em seu início, quando se descreve o conceito central do novo instituto (art. 2º), e quando se aborda suas diretrizes orientadoras (art. 5º, VII). A lei busca esclarecê-las, dizendo que o comércio justo e solidário é a prática comercial diferenciada pautada nos valores de justiça social e solidariedade realizada pelos empreendimentos de economia solidária, e por preço justo entende-se como a definição de valor do produto ou serviço construída a partir do diálogo, da transparência e da efetiva participação de todos os agentes envolvidos em sua composição, que resulte em distribuição equânime do ganho na cadeia produtiva[7].

Acontece que, ainda assim, essas expressões são excessivamente vagas, de maneira que  podem criar mais problemas do que soluções para os contratantes, incentivando a intervenção judicial sobre o contrato para definir o que seria um preço justo quando um EES figurar como parte em um litígio, por exemplo.

Por fim, outro problema está na questionável utilidade dessa categoria jurídica, considerando que, intuitivamente, é justo pressupor que a maior parte dos seus aderentes serão cooperativas, dadas suas características. No entanto, a lei delega à regulamentação da Lei 5.764/71 a constituição e o funcionamento dessas entidades (art. 4º, § 4º)[8]. Nesse contexto, surge o questionamento: os efeitos dessa lei não estariam deixando de alcançar a maioria de seus potenciais beneficiários?

Conclusão:

A nova figura jurídica inserida no art. 44 do CC representa um enquadramento legal, e não um tipo societário ou uma nova pessoa jurídica de direito privado. Nesse contexto, os empreendimentos de economia solidária apresentam algumas contradições em relação a outras categorias previstas no Código Civil, as quais deverão ser solucionadas pela doutrina e pela jurisprudência.

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[1] Conceito expresso no art. 2º da Lei.

[2] “Art. 4º São empreendimentos de economia solidária e beneficiários da Política Nacional de Economia Solidária os que apresentem as seguintes características: II – tenham seus membros diretamente envolvidos na consecução de seu objetivo social;”

[3] MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Economia Solidária. Disponível em: https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/assuntos/economia-solidaria. Acesso em: 9 jan. 2025

[4] § 1º O enquadramento do empreendimento como beneficiário da Política Nacional de Economia Solidária independe de sua forma societária.

[5] OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Economia solidária: Uma nova pessoa jurídica de Direito Privado mesmo? Migalhas, 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/422212/economia-solidaria-uma-nova-pessoa-juridica-de-direito-privado-mesmo. Acesso em: 27 dez. 2024.

[6] I – sejam organizações autogestionárias cujos membros exerçam coletivamente a gestão das atividades econômicas e a decisão sobre a partilha dos seus resultados, por meio da administração transparente e democrática, da soberania assemblear e da singularidade de voto dos associados.

[7] Conceito expresso no art. 5º, parágrafo único, da Lei.

[8] Art. 4º São empreendimentos de economia solidária e beneficiários da Política Nacional de Economia Solidária os que apresentem as seguintes características: § 4º Os empreendimentos econômicos solidários que adotarem o tipo societário de cooperativa serão constituídos e terão seu funcionamento disciplinado na forma da legislação específica.

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