Pesquisa clínica enfrenta obstáculos para crescimento no Brasil

O Brasil está entre os 20 países líderes no ranking mundial de pesquisa clínica, ficando na frente entre os latinoamericanos1. Nos últimos anos, os estudos científicos estão em expansão no Brasil. Entre 2019 e 2024, a pesquisa clínica no Brasil passou da marca de 300 para os atuais 500 estudos clínicos produzidos anualmente, de acordo com a Associação Brasileira de Organizações Representativas de Pesquisa Clínica (Abraco)2

O país está crescendo nesse campo, com uma nova regulamentação e perspectivas promissoras, mas ainda não explora seu potencial completo – perdendo competitividade no mercado internacional. 

A pesquisa clínica é vista como uma etapa primordial de inovação na área da saúde. Por meio desse processo, a segurança e eficácia de novos tratamentos são estudadas, de forma a ampliar a oferta terapêutica no mercado e também fornecer dados para decisões médicas e de saúde pública.

Em 2024, a agência federal americana Food and Drug Administration (FDA) publicou diretrizes do Plano de Ação para a Diversidade, de acordo com as obrigações do Food and Drug Omnibus Reform Act (FDORA), lei de 2022. Dentre os principais aspectos abordados, está a demanda pelo aumento da diversidade populacional em estudos clínicos.

O aumento da participação brasileira é interpretado como fundamental para o crescimento da presença de pacientes latino-americanos em pesquisas clínicas internacionais.

O país tem alguns diferenciais para se destacar: a presença de centros de pesquisa qualificados para estudos em saúde, um sistema de saúde organizado em torno do Sistema Único de Saúde (SUS), e a ampla diversidade populacional, necessária para garantir a exatidão dos dados. 

“A diversidade étnica e genética da população aprimora a aplicabilidade dos estudos. E, quando feita aqui, as pesquisas clínicas podem atender às necessidades de saúde locais, que exigem soluções específicas. Além disso, fortalecem o nosso sistema de saúde, permitindo que pacientes brasileiros tenham acesso a tratamentos inovadores e impulsionando o desenvolvimento econômico e científico do país”, diz Fernando Mos, diretor médico da AbbVie no Brasil. 

Ele enumera que a expansão da pesquisa clínica poderia atrair investimento estrangeiro, gerar novas oportunidades de empregos, melhorar a infraestrutura de saúde, capacitar profissionais e potencialmente reduzir custos de saúde com terapias mais eficazes, assim como melhorar a qualidade de vida da população. 

Outra vantagem da pesquisa clínica é a antecipação da educação médica e do conhecimento de novos medicamentos, permitindo que os médicos brasileiros sejam participantes ativos e estejam atentos ao desenvolvimento de tecnologias inovadoras desde o início”, acrescenta Mos.

Forças a serem exploradas

Assim, evidentemente, o crescimento é uma boa notícia – mas o Brasil fica aquém da sua capacidade. Para se ter ideia, entre 2006 e 2019, foram realizadas quase 250 mil pesquisas clínicas em todo o mundo, sendo que, desse total, pouco mais de 6 mil estudos foram conduzidos no Brasil, segundo a Abraco2

Além disso, a maioria dessa produção científica está concentrada em poucos países, com a América Latina ficando para trás. Dados do Instituto Brasil de Pesquisa Clínica (IBPClin) mostram que 65% das pesquisas clínicas com novos medicamentos, vacinas e equipamentos médicos foram feitas na Europa e nos Estados Unidos. O Brasil foi responsável por apenas 2% desses estudos3.

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“O país tem mais potencial para implementação de mais pesquisas clínicas devido a sua diversidade populacional, sistema de saúde sólido, quadro regulatório estabelecido, necessidades de saúde específicas e capital humano qualificado”, explica Gustavo Morais, gerente de Operações Médicas da AbbVie. “A combinação desses fatores promove um ambiente favorável para a expansão de estudos clínicos, beneficiando também o avanço global da ciência médica”, complementa. 

Para Raphael Ribeiro, do IBPClin, o país ainda se sobressai por seguir padrões éticos e técnico-científicos que se adequam à conformidade internacional – nesse aspecto, o Brasil se aproxima do mercado internacional ao realizar estudos multicêntricos, por exemplo. O executivo também cita a alta taxa de retenção dos participantes brasileiros na adesão aos estudos clínicos, o que impacta na qualidade dos dados coletados.

Em meio a tanto potencial, por que então o Brasil ainda tem números tímidos em pesquisas clínicas? 

Um dos motivos seria a alta complexidade de processos e a burocracia ética e regulatória. “As regulamentações específicas e os processos e prazos de revisão variam entre os países, influenciando a competitividade no campo de pesquisa clínica. Desta forma, um ensaio clínico é aprovado mais rapidamente nos Estados Unidos do que no Brasil, devido a estas diferenças nos processos regulatórios”, analisa Erica Kagiyama, gerente de Operações Clínicas da AbbVie. Essa demora pode desestimular as indústrias que, após anos de investimentos em pesquisa e desenvolvimento, precisam testar as tecnologias – o que, em última análise, atrasa também a chegada de novos tratamentos aos pacientes. 

Novos horizontes e acesso à inovação

Para enfrentar o problema, em maio do ano passado, entrou em vigor a Lei 14.874/2024, que regula pesquisas com seres humanos e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos4. “O cenário de pesquisas clínicas no Brasil é promissor e está em transformação acelerada, principalmente após essa legislação”, explica Ribeiro, do IBPClin. 

Ainda é cedo para mensurar uma transformação na prática, mas, na visão dele, a norma é capaz de estabelecer maior previsibilidade e agilidade na aprovação regulatória ao reduzir o tempo para o início dos estudos. Assim, o país poderá se tornar mais competitivo no cenário internacional de produção de pesquisas. 

“A perspectiva é de crescimento contínuo, impulsionado pelos avanços legislativos, pela diversidade populacional e pelo interesse crescente de investidores em incluir o Brasil em seus projetos globais”, diz Ribeiro. 

Kagiyama, da AbbVie, concorda com essa perspectiva: “a nova lei proporciona benefícios sociais e econômicos e harmoniza o ambiente regulatório brasileiro às normas e boas práticas internacionais em pesquisa clínica. Com uma segurança jurídica mais robusta e maior previsibilidade dos prazos regulatórios, o Brasil tem o potencial de se tornar ainda mais atraente para pesquisas envolvendo seres humanos.” Se as impressões se confirmarem, será possível ver a participação nacional no número de pesquisas clínicas crescer. 

Esse é um passo importante para ampliar o acesso a novas tecnologias não só para os participantes dos estudos, mas também, a longo prazo, para todos os pacientes que possam se beneficiar delas. Ao incorporar um novo medicamento no sistema público de saúde, por exemplo, há um impacto na qualidade de vida e na sobrevivência dos indivíduos que não se adaptaram às opções disponíveis pelo SUS ou em farmácias.

Segundo Mos, diretor médico da AbbVie, há uma grande expectativa com a regulamentação da nova lei. No entanto, ainda há pontos da legislação que precisam ser definidos, como a disponibilização de medicações após a realização dos estudos.

A discussão sobre acesso às inovações vai além do desenvolvimento inicial dos tratamentos por meio da pesquisa clínica. É essencial que os pacientes que participam dos estudos tenham garantias de continuidade no acesso às terapias experimentais, especialmente nos casos em que elas demonstram eficácia e segurança comprovadas.

Contudo, esse benefício deve ser equilibrado com a necessidade de expandir o acesso para a população geral, ao garantir que os avanços possam ser ampliados às populações que têm maior necessidade desses tratamentos.

Esse cenário reforça a importância de debater novos mecanismos para assegurar a incorporação de tecnologias inovadoras ao sistema de saúde. A pesquisa clínica não é apenas um caminho para o desenvolvimento de novos tratamentos, mas também para democratizar o acesso à saúde no país.

Os estudos clínicos desenham hipóteses e produzem dados, que são importantes não apenas para conhecimento acadêmico. Os resultados das pesquisas são relevantes para se transformar em soluções práticas e acessíveis, de forma a atender às demandas dos pacientes e impactar positivamente a saúde pública – em especial, das populações mais vulneráveis e as que enfrentam doenças sem alternativas terapêuticas eficazes disponíveis.

 Importância da expansão 

Para Ribeiro, do IBPClin, existem outros desafios que podem ser citados: “Existe uma infraestrutura desigual entre as regiões que ficam fora dos centros urbanos, que têm um menor acesso a recursos para pesquisa clínica. Também há um baixo investimento local, tanto do setor público quanto do privado para a pesquisa científica”, pontua.

A logística de entrega de insumos, medicamentos e equipamentos em todo o país também é um obstáculo. “Por conta dessa logística complexa, pode acontecer atrasos e altos custos devido às dificuldades no transporte para todo o país”, diz o executivo.

Além da questão logística relacionada a materiais, também há essa dificuldade com os participantes durante o processo de coleta de dados do estudo. Alguns indivíduos têm que se deslocar de suas cidades para os centros de referência para serem acompanhados durante cada etapa da pesquisa.

“Tenho pacientes que precisam viajar por três horas de avião para conseguir o acompanhamento na pesquisa”, relata Dra. Danielle Leão, hematologista da Beneficência Portuguesa de São Paulo (BP) e pesquisadora clínica. “Do ponto de vista profissional do médico, precisamos nos dedicar para a pesquisa assim como para outras atividades relacionadas ao trabalho”, acrescenta a hematologista.

Apesar dos obstáculos, os especialistas endossam a necessidade do desenvolvimento e expansão das pesquisas clínicas no Brasil. “As pesquisas são cruciais para suprir necessidades ainda não atendidas, promover a educação médica contínua e aprimorar a qualidade de vida dos pacientes”, diz Kagiyama, da AbbVie.

Nessa linha, ampliar as pesquisas clínicas significa aumentar as chances de novos tratamentos para doenças graves e complexas – o que se torna cada vez mais necessário diante da mudança do perfil da população, que vive cada vez mais e é exposto a danos do atual estilo de vida urbano. 

Em 2023, segundo o Ministério da Saúde,  foram realizadas 28 incorporações nas seguintes áreas: nove tecnologias para doenças raras, seis para doenças infecciosas, quatro para oncologia, três para doenças crônicas e seis para outras doenças. As incorporações incluem produtos para diabetes, tuberculose, HIV, esclerose múltipla, fibrose cística, hemofilia, mieloma múltiplo, além da vacina contra a dengue. Para oncologia, foram dois medicamentos e dois procedimentos5.

Essas especialidades se relacionam diretamente a uma crescente procura por tratamentos para condições prevalentes como câncer, diabetes, hipertensão arterial ou dislipidemia, por exemplo.

“Essas são as áreas responsáveis pela maior mortalidade dos seres humanos. Em muitos casos, como na oncologia, há um limite em que não conseguimos mais ajudar os pacientes com as alternativas disponíveis no momento. A pesquisa clínica visa melhorar esse cenário, em busca de tratamentos melhores para o controle de diversas doenças”, observa Leão, da Beneficência Portuguesa de São Paulo (BP).

Estudos voltados à infectologia também têm destaque, uma vez que atuam em contextos do desenvolvimento de fármacos ou vacinas para doenças infecciosas e parasitárias emergentes, assim como ocorreu durante a pandemia de Covid-19 e do Zika. 

“As doenças infecciosas são uma preocupação constante em saúde pública, devido ao potencial de surtos e epidemias. Com o aumento da resistência pelo uso indiscriminado de agentes anti-infecciosos, torna-se crescente a necessidade de medicamentos mais eficazes juntamente com políticas de uso adequado”, pontua Morais, da AbbVie. Dessa forma, ter uma estrutura eficiente para pesquisas clínicas coloca o país na frente nesses cenários.

[1] https://www.interfarma.org.br/wp-content/uploads/2023/08/Pesquisa-clinica-2022_atualizado.pdf

[2] https://abracro.org.br/pesquisaclinicanobrasil/

[3]  https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2022-11/crescimento-de-pesquisas-clinicas-no-brasil-e-tema-de-simposio-no-rio

[4] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/l14874.htm

[5] https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2024/janeiro/ministerio-da-saude-esta-preparado-para-incorporar-novos-tratamentos-no-sus-para-pacientes-com-neuroblastoma-e-outras-doencas

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