O Consequencialismo de Neil MacCormick e a ADI 7721

Neil MacCormick, filósofo do direito escocês, é reconhecido por suas contribuições à teoria do direito, especialmente na argumentação jurídica e na interpretação das normas. Nascido em 1941, foi professor na Universidade de Edimburgo, consolidando sua reputação como um dos principais teóricos da filosofia do direito contemporânea e do pós-positivismo. Sua obra aborda temas como a relação entre direito e moralidade, a justificação das decisões judiciais e as teorias de interpretação legal.[1]

Além de seu impacto acadêmico, MacCormick teve uma trajetória política relevante. Foi membro do Parlamento Europeu e defensor do nacionalismo escocês, comprometendo-se com a autonomia da Escócia dentro do Reino Unido e da União Europeia. Faleceu em 2009, deixando um vasto legado intelectual, especialmente com sua obra Rhetoric and the Rule of Law, que se tornou referência nos estudos sobre argumentação e racionalidade nas decisões judiciais.[2]

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Seu capítulo Argumentação fundada em Consequências[3] explora o papel das consequências na justificação de decisões. MacCormick rejeita duas abordagens extremas: a que justifica uma decisão exclusivamente pelas suas consequências; e a que ignora totalmente essas consequências.

A primeira é impraticável, pois exige uma previsão exata de todas as consequências futuras, algo inviável pela incerteza do futuro. Além disso, em geral, limita-se a um único critério de valor, como a análise econômica, que pode negligenciar aspectos de justiça e moralidade. A segunda posição, por sua vez, ignora que o valor de uma decisão está frequentemente relacionado aos objetivos e impactos que ela busca alcançar, o que pode levar a decisões desconectadas da realidade social.

MacCormick propõe uma posição intermediária, na qual as consequências devem ser consideradas na justificação das decisões, mas sem que se tornem o único critério de avaliação. Em casos complexos, é fundamental que as decisões sejam baseadas em uma racionalidade que permita à sociedade e aos julgadores entenderem os motivos da escolha, facilitando a universalização das razões e a compatibilidade com decisões anteriores. O princípio da justiça formal, que exige tratamento igual para casos iguais, demanda que as razões que sustentam uma decisão possam ser universalizadas, ou seja, aplicadas a outros casos semelhantes.

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Assim, MacCormick conclui que, embora não seja possível prever com exatidão como as pessoas reagirão a uma decisão, é crucial que os tribunais considerem seu impacto no comportamento social e nos valores do sistema jurídico. A avaliação das consequências é, portanto, essencial para garantir que as decisões promovam condutas socialmente aceitáveis e orientem os cidadãos quanto aos valores a serem adotados. Essa abordagem evita o absolutismo consequencialista, equilibrando os valores do sistema jurídico com os resultados práticos das decisões.

Nesse contexto, a discussão proposta na Ação Direta de Inconstitucionalidade 7721 convoca a Suprema Corte a avaliar a Lei nº 14.790/2023, que regulamenta as apostas de quota fixa (bets), à luz de suas consequências para a sociedade. A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) argumenta que a lei fere a dignidade humana, a função social da economia e o direito do consumidor, ao aumentar o endividamento das famílias e reduzir a circulação de renda nas classes mais vulneráveis. A CNC alerta que a lei pode resultar em um comportamento financeiro de alto risco entre os consumidores, gerando mais endividamento. Segundo ela, no último ano, as famílias brasileiras gastaram 22% da sua renda disponível em apostas. [4]

Sem dúvida, o tema é polêmico e ganhou especial atenção da mídia nos últimos meses, notadamente em razão da proliferação acelerada de sites de apostas, levando o próprio Ministério da Saúde a considerar a existência de uma “epidemia de bets”[5].

Por outro lado, as projeções arrecadatórias com a tributação dessas atividades dão conta de valores no patamar de R$ 3 bi já em 2024[6] e até R$ 10 bi em 2025[7]. Para se ter em perspectiva, o Governo previu para 2025 um montante de R$ 10,7 bi para o financiamento de programas de habitação para a população de baixa renda[8]. No contexto de discussão do arcabouço fiscal e da necessidade de redução de déficits orçamentários, novas fontes de arrecadação são sempre mencionadas como medidas necessárias para o avanço econômico do país.

É esse cenário multifacetado que a Corte Suprema precisa valorar ao ponderar a conformação constitucional da regulamentação das bets. A noção de consequência em MacCormick sinaliza um caminho de ponderação para questões intrincadas e casos difíceis pautado por uma dimensão que transcende a visão estritamente utilitarista. Ao avaliar as implicações de uma decisão, o autor não se limita a ponderar os benefícios e custos para os indivíduos diretamente afetados, mas explora um leque mais amplo de fatores, incluindo o impacto da norma sobre o ordenamento jurídico como um todo e a compatibilidade com princípios éticos mais gerais.

Para além da constitucionalidade formal da norma que autorizou o funcionamento dos sites de apostas, é preciso verificar se suas consequências guardam constitucionalidade material com os valores éticos e morais da Constituição e se seus benefícios arrecadatórios são mais relevantes que suas potenciais consequências negativas.

A decisão na ADI 7721 indicará um caminho jurídico-normativo para casos semelhantes no futuro. A interpretação legal não se resume a selecionar entre diferentes posições possíveis, mas envolve uma decisão sobre o que se busca realizar em termos de Justiça. A sensibilidade judicial aos efeitos sociais da decisão é tão importante quanto a correção jurídica das premissas utilizadas para embasá-la.

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[1] E SILVA, N. R. de S. Direito e argumentação jurídica em Neil Maccormick. Revista Interdisciplinar do Direito – Faculdade de Direito de Valença[S. l.], v. 10, n. 1, 2017. Disponível em: https://revistas.faa.edu.br/FDV/article/view/198. Acesso em: 20 nov. 2024.

[2] GUARDIAN. Sir Neil MacCormick. Disponível em: <https://www.theguardian.com/politics/2009/apr/07/obituary-sir-neil-maccormick>. Acesso em: 20 nov. 2024.‌

[3] MACCORMICK, N. Retórica e o estado de direito: uma teoria da argumentação jurídica. Tradução de Conrado Hubner Mendes e Marcos Paulo Veríssimo. Rio de Janeiro: Elsevier, Campus, 2008, cap. 6, p.p. 135-160.

[4] SALLUM, S. Epidemia das apostas: brasileiros já gastaram R$ 68 bilhões em jogos on-line – Capital S/A. Correio Braziliense. Disponível em: <https://blogs.correiobraziliense.com.br/capital-sa/2024/09/20/epidemia-das-apostas-brasileiros-ja-gastaram-r-68-bilhoes-em-apostas-on-line/>. Acesso em: 20 nov. 2024.

[5] BOECHAT, G.; CURY, T. Ministra da Saúde considera vício em bets uma pandemia e defende campanha de conscientização como a do tabaco. CNN. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/politica/ministra-da-saude-considera-vicio-em-bets-uma-pandemia-e-defende-campanha-de-conscientizacao-como-a-do-tabaco/>. Acesso em: 20 nov. 2024.

[6] BARCELLOS, T. Governo prevê arrecadação de R$ 3 bilhões com outorgas a bets em 2024. O Globo. Disponível em: < https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2024/10/03/governo-preve-arrecadacao-de-r-3-bilhoes-com-outorgas-a-bets-em-2024.ghtml>. Acesso em: 20 nov. 2024.

[7] BRASIL, E. Qual será o impacto da regulamentação de apostas online na arrecadação. Exame. Disponível em: <https://exame.com/esferabrasil/qual-sera-o-impacto-da-regulamentacao-de-apostas-online-na-arrecadacao/>. Acesso em: 20 nov. 2024.

[8] BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta orçamentária para 2025 tem R$ 168 bilhões em receitas extras. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/1093364-proposta-orcamentaria-para-2025-tem-r-168-bilhoes-em-receitas-extras/>. Acesso em: 20 nov. 2024.

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