O princípio da jurisdição universal no Direito Internacional

Atualmente não são raras as situações nas quais se discute acerca da possibilidade de um Estado soberano investigar, processar e, eventualmente, punir indivíduos acusados da prática de crimes internacionais em cenários de conflitos armados ou durante a vigência de regimes autoritários e ditatoriais cometidos em outros territórios, por vezes sequer existindo qualquer conexão de tal Estado com as circunstâncias do caso concreto.

Exemplos famosos e outros, menos conhecidos, trazem à tona a discussão na mídia e entre profissionais do Direito, das Relações Internacionais, comentaristas políticos etc. Assim, são distintas as óticas e abordagens que se pode imprimir em análises sobre casos tais, sem contar a paixão e interesses ideológicos que, não raro, transmitem a quem deseja informações distorcidas.

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Precedentes importantes vêm estabelecendo vias que permitem uma possível uniformização internacional sobre o tema, uma vez que o tema jurisdição universal é disciplinado de maneira distinta por diversas ordens jurídicas nacionais. No plano internacional não se pode afirmar pela existência de um entendimento uniforme. Daí a profusão de informações equivocadas, mesmo por profissionais gabaritados.

Assim, experiências como os casos Eichmann, Klaus Barbie, Erich Priebke, Pinochet, Hamid Nouri e, mais recentemente, a situação que envolveu o militar israelense Yuval Vagdani e que se encontrava em férias no Brasil, reiteradamente reacendem o debate sobre o direito ou o dever de um Estado soberano investigar, processar, prender e julgar indivíduos que tenham cometido crimes em outros territórios, por vezes sem que tal Estado guarde qualquer conexão direta com os fatos.

Antecedentes históricos e jurídicos

Como é sabido, o Princípio da Igualdade Soberana, constante do artigo 2º, item 1, da Carta da ONU, rege e vincula a todos os Estados-partes das Nações Unidas.

Assim, é prerrogativa de cada Estado legislar sobre suas competências, sua jurisdição e normas processuais aplicáveis em seu território. Logo, não pode e não deve, em regra, um Estado praticar ingerências sobre assuntos internos de outro Estado igualmente soberano.

Após 1945, especialmente por conta dos legados dos julgamentos de Nuremberg e que julgou os criminosos de guerra nazistas, a necessidade de adoção de medidas preventivas para que a paz e a estabilidade mundial fossem preservadas e consolidadas o máximo possível, colaborou para a geração de um período no qual, em casos excepcionais, a soberania dos Estados poderia ser relativizada, como dito, apenas excepcionalmente.

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Os mencionados julgamentos de Nuremberg (um julgamento pelo Tribunal Militar Internacional de Nuremberg – INMT (composto por julgadores oriundos dos quatro países vencedores da 2ª Guerra Mundial) e mais doze julgamentos pelo Tribunal Militar de Nuremberg – NMT (compostos apenas por juízes norte-americanos) deixaram como legado, dentre outros, os denominados sete princípios de Nuremberg, posteriormente consagrados por unanimidade como princípios gerais do Direito Internacional pela Resolução n° 95(I) da Assembleia
Geral das Nações Unidas.

E, um dos princípios de Nuremberg estabelece que o fato da lei interna do país não punir o ato previsto como crime pelo Direito Internacional não o isenta de ser responsabilizado segundo as leis internacionais.

Ora, à evidência que a catástrofe nazifascista e racista que destruiu o mundo na primeira metade do século XX era causa direta não apenas para a efetivação do primeiro tribunal criminal internacional da história (em que pese tentativas anteriores malsucedidas), mas também para a consagração do princípio acima, uma vez que a máquina genocida de Hitler atuou incessantemente, até o último dia da segunda guerra mundial, priorizando o extermínio do povo judeu (e demais grupos-alvos dos nazistas) em todos os territórios ocupados por seus tentáculos assassinos.

Assim, não eram poucos os casos nos quais se tornou impossível a aplicação do critério territorial para definição dos tribunais competentes para julgamento de criminosos de guerra. Poderíamos, assim, exemplificar: considerando as atividades de Adolf Eichmann, em qual território deveria ter sido julgado, se tivesse sido capturado logo após o final da Segunda Guerra Mundial?

Por conta de tal circunstância, em 30 de outubro de 1943 Estados Unidos da América (EUA), União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e a Grã-Bretanha assinaram a chamada Declaração de Moscou, já visando um futuro julgamento dos criminosos de guerra nazistas e pela qual foi estabelecido que os julgamentos de tais criminosos se daria nos países em cujos territórios teriam perpetrados seus crimes; e, que, em relação aos principais criminosos de guerra cujos crimes não apresentassem uma referência ou localização geográfica específica, seriam punidos segundo decisão conjunta dos aliados.

Chamamos a atenção para o fato de que, pela primeira vez na história, a gravidade dos crimes contra a civilização e contra a humanidade passou a ser considerado elemento essencial na consideração do dever imposto a todos os Estados em prevenir e reprimir tais crimes contra a paz.

Interessante, por exemplo, a redação do artigo 1º da Convenção Para Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio, de 9 de dezembro de 1948 ao estabelecer que os Estados contratantes confirmam que o genocídio…é um crime do direito dos povos e que se comprometem a prevenir e a punir.

Do texto destacado acima fica evidente que se o crime de genocídio é um crime do direito dos povos, a interpretação correta é a de que a mencionada obrigação de prevenção e punição a perpetradores do crime de genocídio encontra sustentação num plano superior ao direito costumeiro e ao direito positivo.

Para alguns, cuida-se de uma obrigação de jus cogens, isto é, normas imperativas de direito internacional geral, inderrogáveis, protetivas dos direitos fundamentais da humanidadecompostas por parâmetros éticos conformadores do direito internacional e independentes do reconhecimento e aceitação pelos Estados, nos termos do artigo 53 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 23 de maio de 1969.

Os crimes internacionais são, atualmente, considerados os mais graves. O elemento gravidade ganha em conteúdo jurídico e é essencial para o acionamento das competências e jurisdições das Cortes internacionais, especialmente quando os sistemas jurídicos nacionais não apresentam condições ou, ainda, não têm interesse na prestação da justiça.

O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (1998), em seu introito, é expresso ao afirmar que os crimes de sua competência (genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crime de agressão), por sua gravidade, constituem uma ameaça à paz, à segurança e ao bem-estar da humanidade.

A partir de tal contexto e evolução histórica e jurídica, torna-se mais compreensível a ideia da jurisdição universal.

A jurisdição universal

Cumpre ressaltar que não existe uma definição unanimemente aceita de jurisdição universal no plano do Direito Internacional, convencional ou consuetudinário. Os Estados que normatizaram tal princípio em suas ordens internas o fizeram de modo próprio, conforme voto da Juíza Van den Wyngaert no caso República Democrática do Congo vs. BélgicaArrest Warrant of 11 April 2000, perante a Corte Internacional de Justiça.

A ideia de Jurisdição Universal, também denominada como Princípio da Universalidade ou Princípio da Universalidade da Jurisdição, implica em princípio do Direito Penal Internacional que autoriza um Estado a processar e, eventualmente, punir autores de crimes internacionais, considerados os mais graves, ainda que referido Estado não guarde qualquer conexão com o território onde executados tais crimes ou com a nacionalidade de vítimas ou dos perpetradores.

São premissas para o acionamento da jurisdição universal a gravidade dos crimes, bem como sua potencialidade ofensiva à humanidade.

A jurisdição universal pode ser classificada em duas espécies: a) absoluta ou pura, à qual seriam submetidos todos os Estados e pela qual estes poderiam exercer o direito de processar e julgar autores de crimes internacionais, ainda que não fosse demonstrado qualquer vínculo com o delito, seja territorial, nacionalidade do autor ou da vítima, ou, ainda que qualquer interesse seu fosse violado; e, b) relativa ou condicionada, pela qual se exige a presença do acusado no território do Estado que pretende julga-lo (Judex Loci Deprehensionis), além da indisposição ou incapacidade do Estado de origem do autor do crime ou do local do crime, de efetivar a justiça.

No caso da jurisdição absoluta são fatores preponderantes a gravidade do crime internacional cometido, fator que traz à tona a responsabilidade coletiva dos Estados, enquanto na segunda modalidade o fundamento para o acionamento da jurisdição é baseado em tratado, acordo ou convenção internacional, como por exemplo o Estatuto de Roma.

De antemão deve ser registrado que, contrariamente a distintas opiniões apresentadas pela mídia, o processamento e o julgamento de acusados de crimes internacionais por Estados que os detenham, mas que não apresentem qualquer conexão com o território ou com a nacionalidade dos atores do crime, não é tema novo ou estranho ao Direito.  Fundamentado nas normas peremptórias de jus cogens ou nos princípios gerais de Direito (artigo 38 do Regulamento da Corte Internacional de Justiça), bem como no grau de gravidade dos delitos, devem os Estados extraditar ou julgar (aut dedere aut judicare).

Normalmente, contudo, os Estados estabelecem parâmetros legais, como a necessidade de vínculo com as partes, ou territorial ou, ainda, com eventuais interesses nacionais afetados.

Assim, enquanto no caso Eichmann a Corte Distrital de Jerusalém valeu-se do critério da personalidade passiva (nacionalidade das vítimas), no caso Klaus
Barbie foi considerado o critério da territorialidade e, também, da nacionalidade das vítimas, haja vista o fato de que Barbie cometeu seus crimes de guerra e contra a humanidade na cidade francesa de Lyon, o que lhe rendeu a alcunha de “o carniceiro de Lyon”.

Recentemente, a presença do soldado israelense Yuval Vagdani (membro do 432º Batalhão das Brigadas Givati), no Brasil, suscitou manifestações diversas na mídia e nas redes sociais. Supostamente acusado pela Fundação Hind Rajab (HRF), organização internacional sediada na Bélgica pela suposta prática de crimes de guerra na Faixa de Gaza, teve contra si determinação de início de investigação pela Justiça Federal, com base no artigo 88 do Código de Processo Penal brasileiro, regra processual que trata da extraterritorialidade da jurisdição brasileira.

Nos termos do artigo 7º, inciso I, “d” e II, “a”, do Código Penal brasileiro, a lei penal brasileira é aplicável, quando um crime é cometido no exterior, ao crime de genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil (portanto, não incide no caso do soldado israelense que não é brasileiro e não reside no Brasil e, ainda, porque não há acusação formal de prática de genocídio imputada ao militar israelense) ou, ainda, nos casos dos crimes que o Brasil, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir.

O Brasil ratificou o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional de 1998, no ano de 2002 (Decreto n° 4.388/2002) e que prevê, como de sua competência, os chamados core crimes (os quatro crimes internacionais já acima citados). Some-se, ainda, o fato de que a Emenda Constitucional n° 45/2004 acrescentou o §4° ao artigo 5º da Constituição brasileira pelo qual o Estado brasileiro expressamente se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional.

Além disso, determina o §2° do mesmo artigo 5º da Carta Constitucional de 1988 que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes…dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Portanto, do ponto de vista jurídico, é possível que o Estado brasileiro exerça a jurisdição universal, tanto na modalidade incondicionada, quanto condicionada. Para tanto necessário é, no entanto, que a legislação brasileira tipifique com clareza as condutas e as penas aplicáveis aos casos que envolvam os crimes internacionais, tal como já decidiram o STF e também o STJ (REsp n° 1.798.903-RJ) no sentido de que é necessário a edição de lei em sentido formal tipificando os crimes internacionais, mesmo em se cuidando de tratados internalizados, compatibilizando as leis internacionais com a legislação brasileira (Princípios da Legalidade e da Anterioridade da Lei Penal).

No caso do militar israelense, sob comento, contudo, não há notícia de que exista, em relação a ele, qualquer investigação sequer iniciada pelo Tribunal Penal Internacional; não há qualquer mandado de prisão expedido por quaisquer de suas câmaras a pedido de sua Procuradoria do TPI (OTP). Logo, informações de que o militar teria “fugido” do Brasil não correspondem à realidade, uma vez que não há notícia de qualquer determinação de sua prisão por autoridade judiciária competente.

A própria Polícia Federal, após análise conjunta do caso com o Ministério Público Federal, segundo a imprensa, solicitou à Justiça Federal a reconsideração do despacho para que se dê início a uma investigação por falta de prova da materialidade do crime imputado ao soldado israelense.

A jurisdição universal no caso dos crimes internacionais requer a observância ao devido processo legal, portanto, o desenvolvimento de investigação, comprovação do delito e, somente então, avaliação sobre pedidos de prisão, aspectos ausentes no caso do militar israelense, além da necessária observação ao princípio da anterioridade da lei penal, em sentido formal.

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