Processo administrativo deve prestigiar precedentes judiciais

O elevado número de processos e a complexidade do sistema tributário brasileiro levaram os Poderes Legislativo e o Judiciário a buscarem soluções de racionalização e redução de litígios, adotando mecanismos para unificar e vincular a interpretação de normas.

Com o novo Código de Processo Civil, em 2015, o Judiciário fortaleceu a necessidade de se observar teses já consolidadas em temas de grande relevância. Foi a partir disso que houve a ampliação do sistema de precedentes e a adoção de instrumentos como repercussão geral, rito dos recursos repetitivos ou controle concentrado de constitucionalidade. 

De fato, tais instrumentos melhoraram a eficiência e previsibilidade dos julgamentos. No entanto, essa realidade, lamentavelmente, ainda está distante dos processos fiscais administrativos. 

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Apesar deste sistema que prestigia a tese firmada ter força vinculante na esfera judicial, não há na Administração Pública (e, por consequência, nas secretarias de Fazenda) uma observância automática de todos os precedentes.

No âmbito federal, há alguns mecanismos que ajudam a suprir esta lacuna. Um exemplo é o regramento do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), que prevê situações específicas de vinculação aos precedentes judiciais das Cortes Superiores. Ou o artigo 19-A da Lei 10.522/2002, que autoriza a não constituição de créditos tributários após a elaboração de parecer específico da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN).

Os estados, porém, estão vários passos atrás. Tomemos como exemplo o estado de São Paulo, que concentra parte considerável das discussões fiscais. A Lei 13.457/2009, que regula o processo administrativo tributário no estado, prevê, em seu artigo 28, somente três hipóteses de afastamento da legislação do estado sob fundamento em questões constitucionais — algo que, em tese, tem caráter vinculante.

A primeira delas se dá por decisões em ações diretas de inconstitucionalidade. A segunda hipótese é aplicável quando existe decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, em via incidental, desde que o Senado Federal tenha suspendido a execução do ato normativo. A terceira é nos casos de existência de súmula vinculante. 

Acontece que no atual sistema de precedentes, tais casos são cada vez mais raros, especialmente com a ampliação dos controles difusos de constitucionalidade, sob a égide da repercussão geral, em que os efeitos da decisão do STF avançam para além do caso concreto.

O mesmo acontece com os casos de competência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), já que não há norma que determine a observância obrigatória na esfera administrativa dos casos julgados sob o rito dos recursos repetitivos.

As hipóteses previstas em São Paulo, portanto, estão em completo descompasso com as novas soluções adotadas pelo Judiciário.

Um exemplo claro dessa desconexão se observa no julgamento da “tese do século”, que excluiu do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins. No caso, a análise do recurso extraordinário com repercussão geral levou o STF a extinguir da Ação Direta de Constitucionalidade que tratava do mesmo tema (ADC 18). 

De acordo com posição consolidada da Corte, a análise sob a sistemática da repercussão geral já abordava o tema de forma abrangente, tornando desnecessária a continuidade do controle concentrado típico da ADC. 

Na prática, isso significa que o entendimento sobre a “tese do século” não seria capaz de afastar a legislação estadual em um processo administrativo fiscal em São Paulo, mesmo que contrariando a conclusão do Supremo, uma vez que o caso não se enquadra nos pressupostos previstos na legislação local.

Essa ausência de regulamentação produz disfuncionalidades como a Súmula 10/2017, que determinava que o Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (TIT-SP) reconhecesse que a cobrança de juros moratórios acima da Selic era legal. Ocorre que o STF, em 2010, já havia reconhecido a inconstitucionalidade do tema. 

A súmula foi revogada pelo próprio TIT somente em 2022. Mesmo assim, não deixa de ser absurdo que durante cinco anos o órgão tenha adotado entendimento frontalmente contrário ao Supremo.

Outro caso exemplar de desprestígio dos precedentes na esfera administrativa é a incidência do ICMS nas transferências entre estabelecimentos da mesma empresa. O STJ e do STF possuem jurisprudência pacífica e vinculante no sentido de que não incide o imposto nessas operações. Apesar disso, o TIT, ainda em 2024, não aplica o entendimento firmado pelas mais altas cortes de forma unânime.   

Essa situação traz prejuízo a todas as partes. Aos contribuintes, que devem investir na defesa contra uma autuação que, ao chegar no Judiciário, será derrubada. Ao Fisco, que mantém um grande acervo de processos aguardando julgamento e, inevitavelmente, terá de arcar com honorários de sucumbência.

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A ausência de uma vinculação automática aos precedentes judiciais no âmbito administrativo gera insegurança jurídica e prolonga disputas que poderiam ser evitadas. A resistência à aplicação de entendimentos consolidados pelas cortes superiores, ancorada em uma sanha arrecadatória, reflete uma desconexão prejudicial entre os processos administrativos e o Judiciário.

A construção de um sistema tributário mais eficiente e previsível passa pela incorporação, por parte da administração fiscal, das teses e dos entendimentos que amadureceram e foram adotados pelo Judiciário após anos de julgamentos. Insistir no contrário é contribuir para alimentar a litigiosidade e prolongar a resolução de conflitos. Um cenário que não interessa a ninguém.

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