A (interminável) controvérsia das emendas impositivas

Não há fenômeno mais idiossincrático do presidencialismo à brasileira que as polêmicas emendas impositivas, fenômeno este que tem ocupado os jornais diante da recente (e necessária) interferência do STF no regime, criando um impasse político ainda sem solução definitiva. Para que o entendamos, é necessário traçar um panorama histórico sobre a dinâmica da participação dos Poderes na elaboração orçamentária no Brasil.

As emendas parlamentares têm suas raízes no processo orçamentário instaurado pela Constituição de 1988, que conferiu maior protagonismo ao Legislativo na definição de prioridades orçamentárias. Por muitos anos, essas emendas eram essencialmente discricionárias, ficando sua execução vinculada ao interesse político do Executivo.

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Durante o governo Dilma (especialmente Dilma 2), no entanto, essa lógica começou a mudar. O inequívoco enfraquecimento do Executivo, devido a uma base governista inflada, que se hipertrofiou solidificando um método de manutenção por meio de negociações de benefícios escusos, levou a uma crescente positivação de normas que ampliavam o controle do Legislativo sobre o Orçamento.

Esse protagonismo do Legislativo, que começou a se consolidar a partir das jornadas de junho de 2013, plasmou-se com a eleição de Henrique Eduardo Alves (MDB-RN) para a presidência da Câmara dos Deputados, dando início a uma série de chefes fortes no Parlamento que mudaram a fitofisionomia do sistema presidencialista: depois dele vieram Eduardo Cunha (então MDB-RJ), Rodrigo Maia (então DEM-RJ) e Arthur Lira (PP-AL), todos conhecidos por manobrar de forma habilidosa o Executivo, amuralhando-o mediante o pastoreio de uma massa uniforme, mecanizada e quase que ideologicamente indefinida de parlamentares – o chamado centrão.

Dentre os vários mecanismos de nutrição desse rebanho, pode-se dizer que o principal é o regateio do Orçamento, e isso se faz, desde 2015, por meio das emendas impositivas. Naquele ano promulgou-se a Emenda Constitucional 86, que introduziu a obrigatoriedade de execução das emendas individuais ao Orçamento da União, inaugurando oficialmente o sistema de emendas impositivas no Brasil.

O marco dessa mudança foi a imposição de uma lógica isonômica na alocação de verbas, supostamente reduzindo as margens para barganhas políticas e aumentando a participação do Legislativo na destinação de recursos públicos. Contudo, não foi bem isso que se experimentou, na prática.

O que aconteceu foi que o Congresso acabou ampliando o sistema de emendas impositivas cada vez mais, promulgando as Emendas Constitucionais 100, 102 e 105 (todas de 2019), 109 de 2021 e 126 de 2022, todas no sentido de consolidar as bases normativas para a interferência isolada dos parlamentares no Orçamento.

O avanço das emendas impositivas abriu caminho para modalidades mais polêmicas, como as emendas de bancada e, principalmente, as emendas de relator (RP-9). As primeiras, voltadas para atender demandas regionais articuladas por grupos de parlamentares de um mesmo estado, tornaram-se obrigatórias com a Emenda Constitucional 100/2019.

Já as emendas de relator foram concebidas como uma forma de dar flexibilidade ao Orçamento, permitindo ajustes necessários no relatório final, mas rapidamente se transformaram em instrumentos de negociação política de larga escala.

Esse modelo, que já possuía fragilidades em termos de controle, acabou culminando no chamado “orçamento secreto”, um sistema em que bilhões de reais eram alocados por meio das RP-9, sem critérios claros e com baixa transparência quanto aos parlamentares envolvidos na destinação dos recursos.

Mandatários mais próximos à liderança legislativa e ao relator do orçamento passaram a deter poder desproporcional, utilizando essas emendas para garantir apoio político e assegurar benefícios a suas bases eleitorais, frequentemente em detrimento de políticas públicas estruturantes.

A opacidade desse modelo gerou intensas críticas e levou ao ajuizamento de uma série de ações judiciais, dentre elas a ADPF 854. Em dezembro de 2022, o STF declarou inconstitucional o “orçamento secreto”, afirmando que ele violava princípios fundamentais como a transparência, a impessoalidade e a publicidade. A relatora, ministra Rosa Weber, foi enfática ao determinar que a execução das emendas RP-9 deveria ser acompanhada de informações completas, claras e precisas sobre os responsáveis pela indicação e os beneficiários das verbas.

A decisão do Supremo provocou um abalo no sistema político. Embora tenha encerrado a prática do “orçamento secreto” manteve o impasse sobre como regular de forma adequada a execução das emendas parlamentares. Após muitos debates, em resposta, foi promulgada no ano passado a Lei Complementar 210, que tentou atender às exigências postas no acórdão. Essa lei estabeleceu novos parâmetros de transparência e rastreabilidade, exigindo registros detalhados sobre a origem e o destino dos recursos, além de reforçar o controle por órgãos fiscalizadores.

No entanto, a LC 210 não foi suficiente para pacificar a questão. Em dezembro de 2024, o ministro Flávio Dino, atual relator da ADPF 854, proferiu nova decisão destacando que, apesar dos avanços normativos, ainda persistiam incongruências e lacunas na regulamentação das emendas. Ele determinou que a execução de todas as emendas, inclusive as RP-8 e RP-9, deveria estar condicionada à plena transparência e rastreabilidade, além de atender a critérios técnicos rigorosos. Essa decisão reacendeu os debates e intensificou conflitos institucionais entre os Poderes.

O impasse permanece, com o STF exigindo mecanismos robustos de controle e transparência e o Legislativo resistindo a perder o protagonismo conquistado no processo orçamentário. A complexidade desse embate revela a necessidade de reformar profundamente o sistema de emendas parlamentares, equilibrando o protagonismo do Congresso com a preservação de princípios republicanos e a eficiência administrativa.

Enquanto isso, a governabilidade do país segue impactada, com um Executivo cada vez mais dependente de um Legislativo fortalecido e fragmentado, reforçando a necessidade de soluções que transcendam o mero embate institucional e promovam um redesenho profundo das regras orçamentárias. O caminho para a resolução definitiva do conflito ainda parece distante, mas é essencial para preservar a saúde da democracia brasileira.

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