Assédio moral entre discurso e prática: a queda de Nísia Trindade

A recente demissão de Nísia Trindade do Ministério da Saúde não foi apenas mais uma mudança no quadro ministerial do governo Lula. O modo como o governo e o próprio presidente conduziram essa demissão, em meio a um longo processo de esvaziamento de poderes, escancarou contradições graves no discurso. Em vez de respeitar a dignidade de quem ocupava um posto tão estratégico, a condução do episódio evidencia a distância entre o discurso oficial e a prática.

O governo Lula chegou ao poder com imenso apoio das mulheres e com a promessa de ser um exemplo na luta contra os assédios e discriminações. Lançou o Guia Lilás, criou o Programa Federal de Prevenção e Enfrentamento dos Assédios e da Discriminação, realizou treinamentos e campanhas de conscientização para garantir um ambiente de trabalho seguro e respeitoso.

Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email

No entanto, o caso de Nísia deixa evidente que a isonomia de gênero precisa ser assumida no alto escalão. Sem comunicação clara e com atitudes hostis, expondo a ministra a críticas públicas, constrangimentos e humilhações prolongadas, a forma como a demissão se deu contraria frontalmente todas as diretrizes vigentes para prevenção e enfrentamento do assédio moral na Administração Pública federal, estabelecidas pelo próprio governo, e revela uma cultura de misoginia e violência política de gênero que ainda persiste na cúpula do poder.

O episódio envolvendo Nísia mostra que o “tom que vem do topo” – fundamental para transmitir os valores da organização, transformar sua cultura e garantir direitos – não correspondeu ao discurso oficial. Enquanto as normas e campanhas dizem proteger as mulheres dos assédios e discriminação, a ação concreta foi a manutenção de um ambiente tóxico e inseguro para uma mulher em um posto de liderança estratégica.

O assédio moral de gênero

Ocorre que a “fritura” da ministra não foi apenas uma situação comum decorrente do jogo político ou um mero ato deselegante, tampouco uma odiosa falta de respeito e de cuidado com a mulher Nísia Trindade. Foi um processo prolongado de desqualificação pública, marcado por críticas constantes, boatos de demissão e pressões veladas.

Sob a ótica jurídica, essa prática se enquadra claramente no conceito de assédio moral, definido pela Portaria MGI 6.719, de 13 de setembro de 2024, como “conduta praticada no ambiente de trabalho, por meio de gestos, palavras faladas ou escritas ou comportamentos que exponham a pessoa a situações humilhantes e constrangedoras, capazes de lhes causar ofensa à personalidade, à dignidade e à integridade psíquica ou física, degradando o clima de trabalho e colocando em risco sua vida profissional”.

Esse conceito decorre da Convenção 190 da OIT, que trata a violência e o assédio no trabalho como violações fundamentais dos direitos humanos e está em processo de ratificação pelo Brasil, iniciado em 2023 por proposta do atual governo, mas ainda pendente de apreciação pela Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados.

Portanto, submeter a ministra a uma “fritura” sistemática contradiz diretamente o arcabouço normativo e a agenda que o governo Lula diz promover. Com efeito, ao expor a ministra a críticas injustas e reiteradas e a sucessivas ameaças de demissão pela imprensa, a alta cúpula deixou de seguir aquilo que promulgara.  Não foram meros boatos ou cobranças pontuais, mas um contexto de desqualificação reiterada.

Se um servidor ou servidora do governo federal fosse submetido a esse tipo de pressão por seu chefe imediato, haveria sólida argumentação, no âmbito de um processo disciplinar, de que se estaria diante de um episódio de assédio moral clássico: exclusão, pressão psicológica prolongada, exposição negativa e ridicularização pública com o objetivo de forçar uma saída “por cansaço” ou justificada por incompatibilidades ou suposta incompetência ou ineficiência.

Caso a situação vivida pela ex-ministra ocorresse num ambiente empresarial, não haveria dúvidas: a trabalhadora poderia denunciar a empresa no Ministério Público do Trabalho, pleitear reparação por danos morais e, possivelmente, configurar a rescisão indireta do contrato, dado o tratamento vexatório.

No caso de Nísia, há ainda dois elementos que agravam a situação: gênero como fator de vulnerabilidade, na medida em que a ministra foi, desde o início, alvo constante de críticas misóginas e questionamentos sobre sua liderança e competência que dificilmente seriam dirigidos a um homem.

A exigência de que ela “falasse grosso” em uma reunião ministerial é um exemplo claro de como as mulheres são covardemente cobradas a adotar comportamentos masculinos autoritários para serem respeitadas. Não é demais lembrar que, nesse episódio, tamanha a pressão e desrespeito à dignidade da mulher que sofreu, Nísia chegou a deixar a reunião em prantos e abalada.

Outro elemento foi a campanha prolongada de desqualificação, que gerou um estado de incerteza acerca da manutenção de Nísia no ministério, com ameaças constantes de demissão e críticas públicas, criando um ambiente de trabalho tóxico, inseguro e doentio, que submeteu a ministra a uma violência psicológica permanente. Conforme largamente apontado pela literatura especializada, isso pode causar profundo sofrimento, provocar danos à saúde mental e atuar como agente etiológico causador de graves doenças psíquicas, muitas vezes nunca curadas.

O problema se agrava quando se constata que a demissão de Nísia Trindade não foi apenas um caso isolado de assédio moral. Foi também um ato de violência política de gênero, que intimida e desestimula outras mulheres a assumirem posições de destaque, principalmente aquelas de natureza mais política, alimentando a desigualdade de gênero na Administração Pública, fragilizando as políticas de equidade e perpetuando a sub-representação feminina nos espaços de poder.

Ao desqualificar publicamente uma ministra competente, experiente e respeitada, o governo enviou uma mensagem clara que tem efeitos concretos: mulheres em posições de poder estão sujeitas a serem, a todo momento, intimidadas, constrangidas, ofendidas e “fritadas”, ou seja, vítimas de assédio moral e discriminação e, portanto, expostas a altos riscos de sofrimento e adoecimento mental se não se adequarem aos estereótipos patriarcais de liderança.

O assédio moral praticado contra mulheres no poder também desencoraja a denúncia – se uma ministra não encontrou respaldo no auge de sua exposição política, como esperar que demais servidoras ou funcionárias terceirizadas tenham coragem de relatar assédios – e reforça o machismo institucional ao normalizar práticas de silenciamento e constrangimento, dificultando mudanças culturais necessárias na administração para garantir um ambiente de trabalho seguro e respeitoso para todas as mulheres.

Além disso, a incoerência entre o discurso e a prática do governo mina a credibilidade das políticas de prevenção aos assédios e à discriminação, tornando-as meras declarações de intenção.

Oportunidade perdida e ameaça persistente

O caso de Nísia é, portanto, um alerta para o governo Lula, pois ilustra, de forma contundente, como as políticas de combate ao assédio moral podem naufragar quando a própria cúpula governamental contradiz o discurso oficial. Se o Planalto deseja realmente combater os assédios e a discriminação, no âmbito da Administração Pública, precisa começar por suas próprias atitudes, que servem de referência não só para toda a administração federal, mas também como exemplo às demais esferas governamentais e ao setor privado.

Leis, decretos e campanhas de conscientização são importantes, mas não serão suficientes se as práticas no topo do poder continuarem a contradizer o discurso oficial, que apregoa respeito às mulheres, enquanto a realidade mostra que a proteção à dignidade feminina e o combate a agressões institucionais pouco valem quando colidem com conveniências de poder.

Para mudar essa realidade, é necessário que o governo não apenas cumpra com a isonomia de gênero a que se compromete, como responsabilize aqueles que promovem práticas de assédio e preconceito. Até que haja coerência entre o discurso e as ações, outras mulheres seguirão vulneráveis, desencorajadas a ocupar cargos que, por direito, deveriam ser de livre acesso a todas, sem que isso signifique o risco de assédio moral.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.