Alimentos ultraprocessados na mira da justiça

O adolescente norte-americano Bryce Martinez é o autor de um litígio que nasce histórico e pode mudar os rumos da regulação da indústria alimentícia no seu país e, potencialmente, ter influência em outras jurisdições. Alegando ter contraído diabetes tipo 2 e esteatose hepática aos 18 anos de idade, Martinez processou 11 indústrias fabricantes de alimentos ultraprocessados nos Estados Unidos[1].

Sua petição expõe que as corporações teriam agido de modo negligente e fraudulento, dolosamente omitindo informações quanto à composição dos ultraprocessados e seus riscos. Martinez colocou ainda em xeque a falta de regulação da publicidade desses produtos, denunciando estratégias ilícitas de propaganda, voltadas sobretudo ao público infantil[2].

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A importância do caso Martinez é grande e ela se dá por alguns motivos. Se a discussão sobre as práticas da indústria alimentícia já estava juridicizada, ou seja, tratada no mundo jurídico por meio de direitos e deveres, agora ela passa a estar também judicializada, tornando-se objeto de litígios perante as cortes. A entrada em cena do Judiciário pode levar a consequências relevantes.

Caso seja formado um precedente, ele poderá influenciar tanto o julgamento de novas causas quanto a atuação de reguladores, tais como a Food and Drugs Administration (FDA). Além disso, o caso pode reverberar em outras áreas da litigância estratégica em matéria de direito à saúde. Bryce Martinez v. Kraft Heinz, Inc. tem fôlego para ressuscitar o ambiente das batalhas judiciais havidas contra a indústria do tabaco, colocando, mais uma vez, no banco dos réus a “economia do vício”[3]. Por último e não menos importante, a ação evidencia lacunas e falhas da regulação da produção e do comércio de alimentos ultraprocessados.

Como apontamos em coluna publicada neste JOTA[4], a reflexão sobre o papel do direito na regulação dos sistemas alimentares tem ganhado espaço e relevância no debate público. Temas que vão desde o acesso à terra até a publicidade de alimentos, rotulagem nutricional, tributação, entre outros, são capazes de influenciar de maneira direta o funcionamento da indústria e do mercado, bem como a qualidade e quantidade dos alimentos que chegam à mesa da população. A discussão articula diferentes dimensões regulatórias e atinge o núcleo dos direitos à alimentação e à saúde.

Também aqui no JOTA, Ana Paula Bortoletto Martins, Diogo R. Coutinho, Helena Simões Romano, Jacqueline Leite de Souza, Luiza Kharmandayan, Mariana Levy e Vitória Oliveira apontaram para os dilemas na criação de um conceito jurídico de alimentos ultraprocessados no Brasil que coloque “as políticas públicas para dialogar de forma coordenada e coerente”[5].

Recentemente, novas normas jurídicas foram promulgadas sobre ultraprocessados, criando regras específicas sobre a composição da cesta básica (Decreto 11.936/2024), sobre restrições nos ambientes escolares (Decreto 11.821/23) e sobre o imposto seletivo de bebidas açucaradas (Lei Complementar 214/25). No início deste ano, a aquisição de alimentos ultraprocessados com recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar foi reduzida para 15% (Resolução FNDE 03/25).

Muitas dessas preocupações aparecem no caso Martinez. O processo associa as recentes práticas da indústria alimentícia ao histórico das empresas fabricantes de cigarros, defendendo que os alimentos ultraprocessados também passaram a receber aditivos causadores de vício e dependência.

Esses alimentos seriam artificialmente desenhados para o consumo em excesso (overconsuming). Logo, as empresas não teriam exercido o razoável dever de cuidado para com os consumidores, expostos a aditivos não conhecidos e a um consumo exagerado, causador de múltiplas doenças.[6]

A reclamação de Martinez mira ainda no marketing de ultraprocessados, atacando o uso de embalagens coloridas, personagens animados e parcerias com mídias populares e esportes, por meio dos quais se busca um maior lucro para as empresas ao custo do consumo excessivo de alimentos não saudáveis pela população. Tal estratégia de ocultação de malefícios não seria inconsciente. A peça sugere que as empresas sempre souberam dos riscos que seus produtos representam para a saúde pública, mas optaram por ignorar e não transmitir os alertas.

O processo Martinez fundamenta-se em alegações que não soariam estranhas perante o Código de Defesa do Consumidor brasileiro e outras regulamentações da indústria alimentícia. Ali se defende que estamos diante de um agir negligente, pois as empresas não teriam cumprido seu dever de produzir e comercializar produtos de maneira ética e segura. Haveria, igualmente, omissão de informações, violação da garantia de segurança, fraude e ocultação de riscos reais, práticas comerciais enganosas e manipuladoras, porquanto as empresas, conjuntamente, teriam influenciado o mercado de alimentos e os hábitos dos consumidores.

Revive-se o embate entre uma alegada autonomia para consumir produtos nocivos e o direito à informação e à saúde, tanto na perspectiva individual quanto coletiva. Dados mostram que, no Brasil, o consumo de alimentos processados e álcool tem onerado, cada vez mais, o sistema público de saúde[7].

Diante disso, como a raiz desse tipo de conflito não é inédita, a escolha do perfil dos reclamantes e do tipo de argumentação do caso Martinez sugerem uma atuação que, de partida, já se mostra estratégica, com ambições claras de ensejar mudanças no ambiente regulatório e de obter acesso a instâncias judiciais superiores.

Ainda que seja positivo o questionamento judicial dos alimentos ultraprocessados, convém não celebrar antes da hora. A história dos litígios contra a indústria do tabaco, por exemplo, quase sempre foi marcada por derrotas para os consumidores e a população como um todo.

Por longo período, não houve validação judicial das teses que expunham as condutas ilícitas dos fabricantes. Tanto é assim que, no caso Cipollone v. Liggett, de 1992, a Suprema Corte dos Estados Unidos entendeu que os estados não poderiam agregar exigências de rotulagem para além daquelas estabelecidas na lei federal, restringindo, à época, a possibilidade de recebimento de indenizações[8].

Apenas em momento subsequente as vítimas inverteram a tendência de revezes judiciais. No que pode ser considerada uma “terceira onda” da judicialização dos danos causados pelo consumo de tabaco, os estados passaram a figurar no polo ativo como litigantes e obtiveram sucesso por meio da alegação de que o consumo de cigarros onerava os sistemas públicos de saúde[9].

Assim, em novembro de 1998, os procuradores-gerais de 46 estados norte-americanos e quatro grandes empresas de tabaco firmaram um grande acordo (Master Settlement Agreement), cujos termos incluíram cláusulas no sentido de que as empresas não poderiam mais realizar campanhas publicitárias voltadas para crianças e deveriam pagar US$ 206 bilhões em indenizações ao longo de 25 anos para compensar custos de saúde relacionados ao tabagismo[10].

O caso Martinez pode ainda ser de especial interesse no contexto brasileiro. O país é reconhecido internacionalmente pela proposição da nova classificação de alimentos que categorizou os ultraprocessados[11] e apresenta elevados níveis de judicialização, contando com um Judiciário turbinado em suas competências, capaz de intervir diretamente na regulação.

Litígios contra a indústria do tabaco não se mostram favoráveis. O STJ não tem admitido ainda o papel decisivo da indústria do tabaco em danos aos consumidores, apesar das incontroversas evidências científicas sobre seu impacto na saúde da população[12].

No STF ainda pende de equacionamento o debate sobre a regulação do uso de aditivos – como de sabores e aromas – em cigarros[13]. Logo, não se pode descartar que a judicialização ecoe por aqui, mas sirva mais para fragilizar capacidades regulatórias do que para reforçá-las.

Em qualquer cenário, devemos acompanhar com atenção a frente de questionamento dos alimentos ultraprocessados que o caso Martinez abre perante os tribunais. Diante de um consumo que se mostra mais preocupante e exponencial, num quadro em que o direito ainda tem dado respostas insuficientes ao problema, a judicialização pode não funcionar como uma bala de prata, mas certamente será uma janela de oportunidade para mudanças.


[1] A petição argumenta que os alimentos ultraprocessados são aqueles produzidos com “componentes que imitam alimentos, fracionados em substâncias, quimicamente modificados, combinados com aditivos e, em seguida, reconstituídos por meio de técnicas industriais, como moldagem, extrusão e pressurização”. Utilizando como referencial do Guia Alimentar para a População Brasileira, publicado em 2014 pelo Ministério da Saúde, Ana Paula Bortoletto Martins e colaboradores definem ultraprocessados como “formulações industriais feitas inteiramente ou majoritariamente de substâncias extraídas de alimentos (óleos, gorduras, açúcar, amido, proteínas) derivadas de constituintes de alimentos (gorduras hidrogenadas, amido modificado) ou sintetizadas em laboratório com base em matérias orgânicas como petróleo e carvão (corantes, aromatizantes, realçadores de sabor e vários tipos de aditivos usados para dotar os produtos de propriedades sensoriais atraentes). Ver: MARTINS, Ana Paula Bortoletto; COUTINHO, Diogo R.; ROMANO, Helena Simões; SOUZA, Jacqueline Leite de; KHARMANDAYAN, Luiza; LEVY, Mariana; OLIVEIRA, Vitória. Precisamos de um conceito jurídico de alimentos ultraprocessados? Estabelecer um conceito unificador pode beneficiar o diálogo entre políticas alimentares, ambientais e econômicas. JOTA, 13 set. 2023. Disponível em: https://www.jota.info/artigos/precisamos-de-um-conceito-juridico-de-alimentos-ultraprocessados. Acesso em: 15 fev. 2025.

[2] Cf. Bryce Martinez v. Kraft Heinz Inc., Court of Common Pleas of Philadelphia County, Civil Action Law, dezembro de 2024, case ID: 241201154. Disponível em: https://www.documentcloud.org/documents/25451650-filed-upf-complaint/. Acesso em: 15 fev. 2025.

[3] Expressão utilizada em recente artigo de COUTINHO, Diogo R.; KIRA, Beatriz; OLIVEIRA, Vitória. A economia do vício: no capitalismo movido a fissura, restrição da liberdade econômica não é sinônimo de autoritarismo; regulação clara é questão de saúde pública. Folha de São Paulo, 19 out. 2024. Edição impressa.

[4] LEVY, Mariana; MOTA, Clara; SAITO, Carolina; PIMENTA, Raquel; KIRA, Beatriz. O papel do direito nos rumos da alimentação no Brasil: Regulação da indústria, ao privilegiar alguns atores ou deixar de fazê-lo, tem impacto relevante na segurança alimentar. JOTA, 21 dez. 2023. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/o-papel-do-direito-nos-rumos-da-alimentacao-no-brasil. Acesso em: 15 fev. 2025.

[5] MARTINS, Ana Paula Bortoletto; COUTINHO, Diogo R.; ROMANO, Helena Simões; SOUZA, Jacqueline Leite de; KHARMANDAYAN, Luiza; LEVY, Mariana; OLIVEIRA, Vitória. Precisamos de um conceito jurídico de alimentos ultraprocessados? Estabelecer um conceito unificador pode beneficiar o diálogo entre políticas alimentares, ambientais e econômicas. JOTA, 13 set. 2023. Disponível em: https://www.jota.info/artigos/precisamos-de-um-conceito-juridico-de-alimentos-ultraprocessados. Acesso em: 15 fev. 2025.

[6]A discussão sobre o uso do conceito de “dever de cuidado” como estratégia regulatória para exigir que empresas identifiquem riscos e adotem medidas de mitigação eficiente antes de disponibilizarem produtos ou serviços a consumidores têm ganhado relevância também em outras áreas, como no caso da regulação de plataformas digitais, que apresentam características similares a produtos ultra-processados em relação aos efeitos que produzem para aumentar o consumo/uso dos produtos/serviços. Sobre o dever de cuidado e plataformas digitais, ver Francisco Brito Cruz, Beatriz Kira e Ivar A. Hartmann, “Dever de cuidado e regulação de plataformas digitais: um panorama brasileiro”, Policy Brief No. 1, Universidade de Sussex e Insper, janeiro de 2025. https://www.sussex.ac.uk/webteam/gateway/file.php?name=pb1—doc-um-panorama-brasileiro—pt-final.pdf&site=21

[7] Pesquisa da Fiocruz, em parceria com as organizações não governamentais  ACT Promoção da Saúde e Vital Strategies, estima um impacto sistêmico da ordem de R$ 18,8 bilhões, considerando-se danos indiretos e mortes prematuras. (JERONYMO, Guilherme. Custos de ultraprocessados e álcool ao SUS atingem R$ 28 bi por ano. Agência Brasil, 24 nov. 2024. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2024-11/custos-de-ultraprocessados-e-alcool-ao-sus-atingem-r-28-bi-por-ano#:~:text=A%20partir%20de%20dados%20de,18%2C8%20bilh%C3%B5es%20em%20rela%C3%A7%C3%A3o. Accesso em 15 fev. 2025.

[8] Cipollone v. Liggett Group, Inc., 505 U.S. 504 (1992). Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/505/504/. Acesso em: 15 fev. 2025.

[9] Sobre a terceira onda de litigância, Clifford Douglas e colaboradores explicam que “the US tobacco industry faced a far greater number of lawsuits, and a greater variety of types of lawsuit, between 1994 and 2005 than it had in previous years. Plaintiffs won 31 (41%) of the 75 cases that were tried to verdict during the years 1995–2005. Seven plaintiffs have been paid awards totalling US$115 million, including interest, following the exhaustion of appeals. Based on an evaluation of litigation brought against US industry leader Philip Morris, the total number of cases pending peaked in 2000, dropping off modestly since then. For example, 36 class actions were pending in 2000, while 33 were pending in 2005. In the same time period, individual actions fell from a total of 3385 to 2863. While the playing field has been levelled to some degree in the tobacco litigation arena with respect to the resources brought to bear by plaintiffs and defendants, tobacco industry defendants continue to employ far greater financial and human resources than their adversaries”. (DOUGLAS, Clifford E; DAVIS, Ronald M; BEASLEY, John K. Epidemiology of the third wave of tobacco litigation in the United States, 1994–2005. American Journal of Public Health, v. 97, n. 5, p. 800-810, maio 2007. DOI: 10.2105/AJPH.2006.096477. Disponível em: https://doi.org/10.2105/AJPH.2006.096477. Acesso em: 15 fev. 2025).

[10] CALIFORNIA DEPARTMENT OF JUSTICE. Tobacco Litigation & Enforcement Master Settlement Agreement. Disponível em: https://oag.ca.gov/tobacco. Acesso em: 15 fev. 2025.

[11] Segundo informa o site do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens), “no final dos anos 2000, pesquisadores do Nupens foram pioneiros em apontar mudanças no processamento industrial de alimentos como o principal motor da pandemia de obesidade, que tem início nos Estados Unidos nos anos 1980 e que, no século 21, passa a atingir maioria dos países do mundo. A percepção deu origem a uma categorização de alimentos baseada em como e por que os produtos alimentícios são submetidos a processamentos industriais antes de ser adquiridos ou consumidos. A classificação, denominada Nova, assume que a extensão e o propósito do processamento a que alimentos são submetidos determinam não apenas seu conteúdo em nutrientes, mas outros atributos com potencial de influenciar o risco de obesidade e de várias outras doenças relacionadas à alimentação”. (Cf. NUPENS. A classificação nova. Universidade de São Paulo, 2023. Disponível em: https://www.fsp.usp.br/nupens/a-classificacao-nova/. Acesso em: 15 fev. 2025. Ver ainda: MONTEIRO, Carlos Augusto; LEVY, Renata Bertazzi; CLARO, Rafael Moreira; CASTRO, Inês Rugani Ribeiro de; CANNON, Geoffrey. A new classification of foods based on the extent and purpose of their processing. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 26, n. 11, p. 2039-2049, nov. 2010. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-311X2010001100001. Acesso em: 15 fev. 2025).

[12] De acordo com pesquisa jurisprudencial elaborada pela ACT – Promoção da Saúde, vale consultar o link: https://www.jota.info/coberturas-especiais/stj-nao-admite-papel-decisivo-da-industria-do-tabaco-em-danos-a-saude-diz-pesquisa

[13] O Supremo Tribunal Federal (STF) vai decidir se a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) pode editar normas para restringir a importação e a comercialização de cigarros com aditivos. O assunto é objeto do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1348238, que teve repercussão geral reconhecida (Tema 1252). Ver: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=509983&ori=1. Acesso em 16 fev. 2025. Sobre o tema, vale consultar CARVALHO, Adriana; COUTINHO, D.et. al. STF e a regulação de aditivos. Disponível em:  https://www.jota.info/artigos/o-stf-e-a-regulacao-de-aditivos-em-cigarros

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